Contos de Vigilus 09: Na Barriga da Besta
Hoje, no nono conto de Vigilus, Echotrel nos mostra as tensões ao se trabalhar como serviçal do Caos na Forja Infernus em Nemendghast.
As portas da forja infernal se abriram com um barulho ensurdecedor. Uma sentença de morte para um dos servos, Echotrel Cincotrês descobrira da pior maneira. A morte era a única linguagem conhecida pelos mestres.
“Você”. Um rosnado distorcido veio do outro lado do monstro mecânico diante de si, o Venomcrawler demoníaco ao qual a equipe de Echotrel sacrificara a própria integridade, física e psicológica, para aplacar. “É a sua vez”.
Echotrel sentiu uma pontada de terror em sua alma, mas foi Daunta Nove, ao seu lado, que foi erguida pelo pescoço de sua estação de trabalho. Seu corpo passou pelo diagrama hexagramático gravado no concreto próximo à Máquina Infernal, e depois jogado bruscamente através dos arcos incandescentes da Forja Infernus.
Seu breve grito foi entrecortado, doloroso de ouvir, enquanto ela se debatia. Apesar de tudo, Echotrel sentia algo por ela. Se imaginava lutando por ela contra seus mestres. Contudo, sentia um profundo alívio por não ter sido ele. Abaixou a cabeça ainda mais, ignorando a dor no pescoço e o zumbido visceral de seus biônicos, enquanto tentava se esconder nos painéis e tubos da máquina aracnídea.
O servo podia ver seu reflexo no abdômen negro da máquina de guerra. A figura que o encarava de volta era pálida, coberta de aprimoramentos cibernéticos e marcada com uma cicatriz de oito pontas. Ele odiava aquela visão tanto quanto estar próximo daquela criatura. Ocasionalmente seu reflexo sorria, embora ele não tivesse feito isto. Essa era a última coisa que ele faria.
Cada porção dos seus instintos gritava para que ele saísse dali, embora tivesse trabalhando naquele monstro semanas a fio. Seus dedos, tão queimados e calejados que pareciam mais luvas de carne carbonizada do que dedos ágeis, tremiam de puro terror. Mesmo assim, ele se obrigou a chegar perto. Preferia ser empurrado contra o metal quente da Máquina Infernal do que se arriscar a ser visto pelas figuras mais adiante.
Sim, dizia o demônio dentro da armadura, falando em sua mente. Aproxime-se. Afrouxe as correntes, meu amigo. Só um pouco.
Ele sentiu a garganta apertar ante a mera presença da coisa, mas conseguiu conter a bile quente. Esfregou os olhos. Preciso me manter focado, pensou Echotrel. Vomitar seria mostrar fraqueza, o que seria sua sentença de morte. Garantiria que um punho de ceramite quebrasse seu crânio e o jogasse na pilha de cadáveres putrefatos que jazia sobe as galerias.
Echotrel viu algo gigantesco em sua visão periférica, e ouviu o barulho metálico de pés blindados quando um de seus mestres se aproximara.
Foco, disse a máquina demoníaca. Liberte-me. O tempo é curto.
Então uma série de explosões abafadas ressoou à distância, mais altas do que usual agora que as portas da forja estavam completamente abertas. Mais bombardeios. Os Imperiais não deixariam Nemendghast de pé. Ele podia sentir a ansiedade do Daemon em sair dali, de chegar até o confronto. Algo dentro de si sentia o mesmo, ele percebeu com um arrepio. Se ele lutasse, poderia deixar essa realidade maldita com uma morte rápida.
“Esse aqui”, disse uma voz grave atrás dele. Uma manopla pesada tocou seu ombro, lançando ondas de dor através de seu pescoço e clavícula. “Ele tem a marca, ou algo assim”.
Ele sentiu um de seus mestres se abaixar, e o calor emitido por seu elmo sobre sua cabeça. “Pegue a corrente, escravo. Quebre o selo, e liberte a besta. Precisamos dela”.
Sim, gritava a Máquina Demoníaca. Liberdade!
Tremendo, Echotrel se virou e encarou a máquina gigantesca. O rosto macilento era tomado por dois grandes olhos vítreos, que encaravam diretamente sua alma. Mandíbulas monstruosas se abriam e fechavam, derramando torrentes de óleo que salpicavam em seus pés.
Pegue a corrente!
Echotrel pegou a corrente rúnica, cujos pesados elos de ferro negro eram quentes o bastante para queimar suas mãos. Ele se obrigou a se virar. Apagando cuidadosamente uma parte do diagrama hexagramático com a ponta de suas botas, ele avançou alguns passos, rezando para os deuses da Forja Sombria para que a Máquina Demônio não o atacasse assim que estivesse livre das runas de aprisionamento. Ele podia imaginá-la avançando atrás de si, inoculando-o com seus humores venenosos ou esmagando seus ossos no concreto do manufactorium, por puro capricho.
O escravo caminhou em direção às portas da forja, suas pernas ameaçando rebelar-se contra ele. Mesmo um tropeço poderia provocar os instintos predatórios do Demônio, e fazê-lo tomar Echotrel como um alvo, ao invés do benfeitor responsável por sua libertação.
Echotrel prendeu a respiração enquanto atravessava os arcos da porta. A visão do céu em chamas foi demais para sua mente, e a dor guiou seus dedos até suas têmporas. O fenômeno celestial era terrivelmente grandioso, assustador em sua intensidade, como se os próprios deuses estivessem observando tudo através da Grande Cicatriz.
Explosões alaranjadas surgiam na escuridão até o outro lado do grande domo que cobria o complexo industrial, e a espaçonave azulada dos cães do Imperador deixava um grande rastro conforme sobrevoavam o local. Tais visões nada significaram diante da grandiosidade da Cicatriz. Echotrel permaneceu imóvel, hipnotizado.
O Daemon passou por ele em um turbilhão de patas, arrancando a corrente de suas mãos estáticas. Um dos espinhos das patas atravessou suas costelas ao passar, rompendo seu transe. Ele cedeu com um grito enfraquecido, seguido de um jato de espuma ensangüentada, e caiu de joelhos antes de se encolher como uma criança. O monstro avançava pela selva de tubulações adiante, com um grito que era uma combinação de um jato de vapor com o grito de uma alma torturada que finalmente deixava seu purgatório.
Uma torrente de emoções percorria o íntimo de Echotrel enquanto observava a criatura alcançar o andar inferior – alívio, dor, medo, e até algum tipo de orgulho paternal. As armas em seus flancos, que ele lubrificara horas antes, funcionavam perfeitamente, lançando projéteis incandescentes nos Space Marines que desciam através das nuvens de fumaça. Um dos legalistas chegou perto demais, então o Daemon saltou como uma pulga e capturou sua presa ainda no ar.
Ouviu-se o som da artilharia, e o domo logo acima foi desfeito em uma explosão de estilhaços. Uma coluna turbulenta de fogo irrompeu de dentro do complexo, como se um grande draco tivesse sido provocado em seu covil. A causa da explosão tornou-se obvia quando um trio de Space Marines voadores sobrevoou o local, disparando mísseis e danificando ainda mais o hemisfério gigante.
Três aracnídeos demoníacos escalaram o domo destruído, então mais três, logo uma dúzia, surgindo como insetos de uma colônia escondida. Bestas ainda maiores avançavam entre eles, esmagando tudo pelo caminho. Echotrel observava com horror e fascínio, seus olhos arregalados e seus dedos coberto com as entranhas de suas costelas abertas. Haviam centenas daquelas coisas, e elas estavam tomando as ruas para se lançar contra a vanguarda dos Spaces Marines.
Glória aos deuses sombrios, pensou Echotrel; os mestres estavam certos, apesar de tudo. Nemendghast pertence aos Daemons, e apenas aos Daemons.
Tradução por Wilton Barbosa