Contos de Vigilus 10: O Mensageiro
Hoje Wilton nos traz a tradução do décimo conto de Vigilus, nele acompanharemos a Lex-Adepta, Venastra Ghorrod, com sua missão, provavelmente, crucial para a resistência de Vigilus.
A Lex-Adepta Venastra Ghorrod avançou pela ponte estreita de vidrocreto seguido pelo seu escripto-servo. Fizeram uma curva acentuada na intersecção meridional entre o coro astropático e a famosa Galeria dos Dadossantos do Neo-Vellum. Venastra estava focada, preocupada em concentrar-se mais na passarela do que no poço de ácido borbulhante abaixo dela, ou no som de Rhombdu-5li acompanhando seus passos. A despeito das distrações, ela não tinha receio quanto a entrega da mensagem que lhe fora confiada; como uma adepta do scriptorum, ela não poderia esquecê-la mais do que poderia esquecer o próprio nome. Os cânticos e avisos do Astropata, recebidos de Nemendghast, reverberavam em sua mente.
O Rei Sombrio está vindo. Sua lâmina tem dois fios.
Venastra fez uma careta, e pela qüinquagésima vez forçou-se a se focar em seu trabalho, e chegar rápido aos Informassanto. Não lhe cabia decifrar ou analisar a mensagem, tampouco reagir de outra forma que não repassar a mensagem para o Senado de Vigilus através do transporte pneumático. Mas mesmo após tanto tempo, ele não podia evitar.
As sentinelas não podem cair. O sangue da Terra precisa se manter íntegro.
Por um momento, Venastra escutou ruídos, e levantou a cabeça. Teria sido de algo muito maior do que um macrosquito ou uma ratazana, isso era óbvio. A imagem de lâminas heréticas na escuridão surgiu em sua mente. O conflito em Vigilus, inescrutável através do eterno miasma do Neo-vellum, entrara em um novo estágio, e os rumores diziam que as forças do Destituído entraram em cena. Era possível que agentes inimigos conseguissem alcançar o Neo-vellum. Improvável, mas ainda possível.
O caminho deve ser mantido livre.
Venastra suspirou pesadamente, e avançou pelo grande salão. A grandeza do lugar encheu-lhe de um sentimento de insignificância, e a importância de sua mensagem foi ofuscada pela magnanimidade do coração oscilante do Neo-vellum. Sobre sua estrutura, o Informassanto rugiu, sobrecarregado pelo volume de informações que era forçado a processar, e pela incompetência dos suplicantes à sua volta.
O grande engenho cogitador tornara-se ainda mais truculento, divagou Venastra. Ela mordeu uma cutícula manchada de tinta em seu dedo mínimo enquanto os tubos da máquina, tal qual um órgão, lançavam sons mecânicos exasperados. Pequenas poças de tinta e óleo cobriam o chão frio sob a superestrutura, de onde partia um emaranhado de ferragens e tubos pneumáticos, como as entranhas de um deus mecânico eviscerado. Venastra conhecia o engenho o bastante para identificar os sons de seus mecanismos. O espírito da máquina estava perturbado por conta do fenômeno que dividiu o céu, e seu humor desde então não era dos melhores.
Ela olhou em volta, certificando-se que o inconveniente Proctor Von Scrass não estava presente, então olhou para cima em busca da mancha arroxeada no firmamento. Observar o Abismo era um luxo que ela costumava se dar – era altamente ilegal, mas estranhamente viciante. Embora quase impossível de se ver através do vidro manchado do teto, era algo fascinante para ela. Fascinante e perturbador.
Os pesadelos eram abundantes desde que o Grande Abismo conspurcara o céu sobre o Neo-vellum. Provocavam inquietações que os escribas não conseguiam suportar. O papel da lua do Administratum nesta guerra era essencial. A chegada oportuna de um cilindro de mensagens poderia mudar os rumos de um dos teatros de operações; isso era insistentemente repetido pelos supervisores. Se alguém recebesse alguma mensagem astropática do alto comando de Vigilus, não haviam desculpas – seria uma prioridade, e um sacrifício seria necessário: uma unha humana, arrancada desde sua base.
Isto é, sua unha cuidadosamente cortada seria arrancada pelas engrenagens do Informassanto, provocando uma dor lancinante que aos poucos daria lugar a uma dor contínua. Esse era o preço da dedicação da máquina. Levada pelas engrenagens e pistões sibilantes, o pedaço de queratina agradaria o espírito da máquina por algum tempo. Então o maquinário platinado refaria os cálculos orbitais para que o lançamento do cilindro levasse em consideração os movimentos tanto da lua quanto do planeta. O custo do empenho do Informassanto era conhecido desde a Missiva de Sangua Terra. Nos meados de M39, antes que os conceitos de prévio e post fossem incluídos em seus calendários, um cilindro de mensagens alcançaria o Concílio Aquilarian na hora e local determinados com uma ínfima margem de erro. A Missiva chegara justamente quando o debate sobre os direitos de uso da Garra de Nachmund alcançara seu ponto crítico. Com isso evitou-se uma guerra dispendiosa e potencialmente herética, e desde então, os escribas do Neo-vellum têm oferecido sacrifícios em troca do envio de suas mensagens mais importantes. Venastra ainda tinha duas unhas em seus dedos, e faria o sacrifício de cada uma delas valer a pena.
O dia chegara. O Rei Sombrio trouxe consigo fogo e destruição, isso era claro. Mas ele poderia ser detido, quem quer que ele fosse, e sua lâmina de dois gumes neutralizada. A mensagem era tão imprecisa quanto uma carta de tarô imperial, mas a experiência de Venastra dava-lhe a certeza de que se tratava de dois ataques, e não um. Sentinelas, no plural, e Vigilus era conhecido como um mundo-sentinela. Ainda que vaga, era uma informação vital.
Com seu escripto-servo Rhombdu-5li atrás de si, Venastra se aproximou respeitosamente do gigantesco Informassanto, curvando-se ante seu poder. Subindo as escadas em espiral que se erguiam ao longo da estrutura, que estremeceu como se sentisse um mau-presságio. Segurando-se, ela olhou para Rhombdu-5li, assustada. O rosto macilento do servo permaneceu imutável; essa fleuma era de alguma forma reconfortante.
Venastra terminou o percurso até o púlpito de translação, e acendeu as velas negras como já fizera outras vezes. Escutou movimentos novamente – um ruído de arranhão e o farfalhar de tecido – e se apressou. Apertando os olhos, ela pressionou as devidas runas no complexo terminal do cogitador até que a primeira sentença da mensagem de Nemendghast estivesse diante de si, em preto e branco.
Os sons de movimentos agora estavam assustadoramente próximos. Arranhando, arrastando-se e respirando pesadamente, como se algo rastejasse sobre a passarela.
Ela olhou para baixo, e viu um pesadelo.
Uma criatura púrpura, com cristas ao longo de seu crânio a encarava com maliciosos olhos negros. Golpeou com um par de garras e arremessou Rhombdu-5li nas entranhas do cogitador. Naquela noite, o Informassanto recebeu algo bem maior do que unhas. Apavorada demais para gritar, Venastra Ghorrod saltou na passarela abaixo, e correu para se salvar.
Atrás dela, o Informassanto rugiu, com a mensagem de Nemendghast brilhando na tela, bem como a runa de envio. Então a mensagem desapareceu, e a máquina silenciou.
Traduzido por Wilton Barbosa