O Despertar Psíquico: Uma prova de fé
O Despertar Psíquico e a ascensão dos Ynnari estão intimamente ligados. E nesse conto de Jon Flindall descobriremos como outra facção Aeldari lida com os servos do deus da morte.
“A primeira etapa da dor é o medo”.
Dhorael encarou seu torturador com os olhos embaçados. O Haemonculus tinha uma expressão paciente, como um professor que espera um aluno lento aprender a matéria.
“A primeira etapa da dor-”
“É o medo”, disse Dhorael. Sua língua parecia um corpo estranho em sua boca.
“Exatamente”, disse Karzavash, com seu olhar paciente.
Dhorael se perguntou como ele podia ler seu algoz tão claramente. O Haemonculus tinha seis olhos, dispostos em pares; a boca terminava em pequenos tentáculos, que se uniam aos lábios formando expressões. Entretanto, Dhorael sabia que ele estava sorrindo.
“Medo, como nos ensinaram os antigos, é o companheiro mais íntimo da dor. Sem medo, a dor é apenas… uma função corpórea, uma condição vital. E facilmente ignorada. Dor sem medo nem é dor – é uma bebida insípida, comparada ao néctar que provarei.”
Karzavash curvou-se sobre o dispositivo que prendia Dhorael, e esticou um dedo laminado a fim de arranhar o braço ósseo da cadeira. O Asuryani sentiu um cheiro acre em seu torturador, parecido com água parada.
“E qual é teu medo, filho de Alaitoc?”, continuou, com uma voz de criança doente. “Que horrores rastejam em teus pesadelos? O que é mais precioso para ti? O que desejas esconder de mim?”. Os tentáculos bucais revelaram um largo sorriso no rosto de Karzavash, repleto de dentes de metal polido.
“Descobriremos juntos, certamente. Temos muito a ensinar um ao outro, tu e eu. A nona etapa da dor…”
“É o entendimento.”
“Excelente, Dhorael – entendimento. E nós nos entendemos, não é?”
Dhorael encarou seu captor. Focar-se naquela forma alta fez arder seus olhos, mas ele não podia se permitir desviar o olhar.
O Haemonculus parou diante de uma série de prateleiras no canto da câmara, onde não haviam instrumentos de tortura, mas vasos, alambiques e urnas. Tubos saiam de algumas, conectando-se a máquinas complexas, monitoradas por Karzavash. Os engenhos borbulhavam e chiavam, quebrando o silêncio.
“Eu te falei sobre minha biblioteca, não? E falaste de tua nave-colônia. De teu caminho. De tua família”. Karzavash tocou um dos vasos embaçados com suas garras; seus olhos se fecharam.
“Compartilhei meus maiores tesouros contigo, Dhorael. Minha coleção contém pedaços de vários nobres de Commorragh; um seguro contra seus… infortúnios. Se o escravagista Equatex for derrubado por um de seus rivais, por exemplo, guardo uma de suas falanges, contendo sua essência. Pode demorar, mas posso cultivar um escravagista novo, para que ele possa se vingar de seu assassino.”
O tronco implantado do Haemonculus ondulou em movimentos peristálticos, reverberando até as suas costas. De alguma maneira, Dhorael sabia que Karzavash estava rindo. Mas como? Já tinha visto aquilo antes? O aeldari percebeu que não sabia há quanto tempo permanecia cativo.
“Equatex pode lamentar a ambiguidade de nosso acordo”, continuou o torturador, “quando acordar aqui… mas estou perdendo o foco”. A criatura se endireitou e seus olhos se abriram, novamente focados em sua vítima. “Também tenho um pouco de ti em minha coleção, e um pouco de mim”.
Dhorael se esforçou para olhar os próprios dedos, mas suas mãos estavam envoltas em luvas negras, conectadas a receptores de dor. Qual Karzavash removera?
“Através de minha arte, vida e morte me pertencem. Meus convidados jamais escapam de meu escrutínio a menos que seja minha vontade. Eles podem morrer milhares de vezes, mas ainda são meus. Por isso falo de entendimento, Dhorael. Entenda – eu já compartilhei muito contigo, mas tu ainda escondes algo de mim. Não deixarei isto passar. A décima-sétima etapa da dor-”
“Esperança! A décima-sétima etapa é a esperança!”, soluçou Dhorael. Suas palavras soaram embargadas; sua língua parecia se articular antes que sua mente formasse as palavras.
“Sim! Sim. E qual é a tua esperança?”
Dhorael tentou desviar o olhar, mas o Haemonculus há muito removera suas pálpebras, e as amarras o impediam de mover a cabeça.
“Tua fé? Acreditas que é esperto, mas te conheço por dentro e por fora. Te entregaste a Ynnead, o grande unificador”. O escárnio na voz de Karzavash feria os ouvidos de Dhorael. O sangue escorreu de sua boca, e caiu sobre seu peito.
Dhorael encarou seu captor, em silêncio. As suturas na testa do torturador se retraíram quando suas sobrancelhas se ergueram, expressando surpresa.
“Sim! Tu achas que teu espírito é dele. Acreditas que ele te arrebatará, que te tomará pra si quando teu tempo aqui se esgotar”. O Haemonculus gargalhou novamente, os fluidos ácidos escorrendo de sua boca disforme.
“Vã esperança! De fato estás morrendo, Ynnari, mas és meu agora e para sempre!”
“Não”, disse Dhorael. “Entreguei minha alma a ele. Ao morrer, me juntarei à unidade, ao espírito infinito, e o que restar de meu corpo será pó. Qualquer troféu sombrio que você tirou de mim não será nada além de cinzas. Eu escaparei de você, carniceiro, e servirei Ynnead na morte”.
O torturador avançou, com a cabeça inclinada; seus olhos piscaram em sequência quando ergueu a lâmina envenenada, sua voz infantil soou furiosa. “Veremos. Tua vida acaba agora, Dhorael – mas não a tua dor”.
“Você me liberta, torturador! Grande Ynnead, toma min-”
“A primeira etapa da dor é o medo”.
Dhorael encarou seu torturador, piscando os olhos para desembaçar a vista. A criatura estava sorrindo, embora ele não soubesse como era capaz de interpretar tal expressão. Há quanto tempo estaria ali? Morreria em breve, decerto; Ynnead levaria sua alma, e não haveria mais dor.
Karzarvash inclinou-se para frente e marcou mais um risco no braço da cadeira de Dhorael, que estava coberta de diversos outros. Em contrapartida, o aeldari percebeu que seu braço estava inteiro novamente, a pele limpa e sem marcas.
“A primeira etapa da dor…”
“É o medo”, disse Dhorael.