O Despertar Psíquico: A sombra
Não bastasse as forças primordiais do Caos manifestando-se direta e indiretamente por toda a galáxia, o Império da Humanidade também lidar com a voracidade enlouquecida dos Tyranids. É o que nos mostra o novo conto de Mel Roddis.
O comandante Olson observou horrorizado as pálidas estruturas vomitando milhares de fragmentos no vazio. Mesmo que os técnicos de auspex não conseguissem rastreá-los, ele percebeu que cada um deles eram versões menores da nave maior, de forma insetóide e claramente alienígena. Placas de matéria óssea escura presas com fibras musculares e carne, sob as quais pulsavam órgãos róseos sobre os quais Olson nada sabia. As naves desviavam do fogo imperial com uma facilidade sobrenatural.
“Atenção!”, gritou quando dúzias delas, desviando dos disparos da Horizonte ativaram os sensores de perímetro da nave, ativando sirenes e luzes piscantes por toda sala de controle. Pouco depois, a Horizonte estremeceu violentamente com o impacto das criaturas sobre o casco. Tripulantes foram jogados de seus terminais e labaredas irromperam das portas danificadas.
As luzes falharam, deixando todos em total escuridão por um segundo, então o vermelho das luzes de emergência iluminaram aquela cena caótica. Olson sobreviveu ao impacto. Tripulantes feridos caídos no chão, gritando, ou em um silêncio mortal. O tenente Madden apagava um dos incêndios com um extintor.
Olson observou as próprias mãos, agarradas no corrimão à sua frente. Seus dedos estavam brancos, e ele sabia que soltasse as mãos, não conseguiria conter os tremores. Eram cada vez piores desde que encontraram o Navegador arrancando a própria pele, dias atrás. Não fazia ideia do que poderia causar tamanha loucura. Agora eles sabiam.
As duas grandes naves preenchia todo o portal de observação, e Olson sentiu uma mente maligna, encarando-o de volta, analisando-o.
“Fomos abordados!”
O grito o despertou de seus devaneios; do painel de vox pôde ouvir alertas de criaturas nos corredores, as mensagens interrompidas por gritos violentos. Antes que pudesse agir, as portas para a ponte de comando foram arrancadas como se fossem de papel. Olson não sabia dizer se o ruído era do metal sendo rasgado, ou da terrível criatura.
Ela entrou no recinto; tinha bem mais de dois metros de altura, uma boca repleta de dentes afiados, e uma carapaça farpada cobrindo a cabeça. Um dos três pares de membros segurava algo que parecia uma arma de fogo, embora formada pela mesma matéria orgânica da criatura. As pinças escuras nas pontas de seus membros superiores brilhava horrivelmente sob a luz vermelha.
“Pelo Trono…” suspirou Olson.
Por um breve instante, ninguém se moveu. A tripulação apenas encarou a criatura como se tivesse surgido de seus pesadelos, até o tenente Madden gritar algo incoerente e abrir fogo com sua pistola. Alguns conseguiram sair de seu estado de choque e fazer o mesmo.
Olson largou o corrimão e ainda trêmulo, retirou a arma do coldre. Atirou na criatura, que permaneceu, recebendo todos os tiros como se estivesse se preparando. Então se moveu, aparentemente intacto, desviando com uma surpreendente desenvoltura até disparar com a própria arma.
Olson lutou contra a náusea ao testemunhar seus homens sendo massacrados, contorcendo-se em algum tipo de fluido orgânico que derretia carne e equipamento. Ele atirou novamente, mas a coisa continuou desviando, saltando paredes e se esgueirando sobre os escombros para escapar do ataque.
O comandante, abismado, olhou a sala e contabilizou os mortos e feridos. Madden ainda estava vivo, atrás de um terminal, ainda trocando tiros, embora houvesse uma grande queimadura em sua perna A criatura agora alcançava a frente da ponte, próximo à vigia, deixando a saída da sala livre. A armaria do setor era próxima.
“Mantenha-no ocupado!”, o grito de Olsen atravessou o ruído de disparos, alcançando Madden. O comandante correu através das portas destruídas e alcançou o corredor.
As luzes de emergência pulsavam, fazendo com que a cena à sua frente parecesse estar em stop-motion. O corredor coberto de corpos, alguns inertes, alguns ainda agonizando. Nem todos eram humanos; os poucos xenos mortos deu-lhe esperanças de que o Imperador ainda velava por eles. A tripulação estava usando os corpos como barricadas enquanto trocavam tiros com os monstros invasores.
Uma grupo de criaturas se esgueirava pelas sombras, tendo ocasionalmente suas presas afiadas, garras reluzentes, línguas longilíneas e abdomens segmentados capturados pelas luzes oscilantes. Tais criaturas eram menores do que a besta que invadira a ponte de comando, mas eram numerosos e se moviam mais rápido do que podia-se perceber.
Olson se posicionou junto a uma subordinada, que atirava com uma pistola, agachada junto a um dos cadáveres quitinosos.
“Qual o seu nome, soldado?”, gritou em meio a confusão.
A tripulante olhou surpresa para o comandante recém surgido ao seu lado.
“É Sims, senhor”, gritou de volta.
Olson apontou em direção a ponte.
“Não vá pra lá”, disse. “Precisamos de armas maiores. Eu irei até ao arsenal, me dê cobertura!”
Sims meneou a cabeça e continuo a atirar enquanto Olson saltava sobre os cadáveres e atravessava rapidamente o corredor, executando as criaturas que encontradas no caminho – formas claramente inferiores, que mal resistiam a alguns disparos. Mesmo assim, mais delas adentrava o corredor, e apenas o fogo contínuo da tripulação os impedia de tomar completamente o deck.
Olson avistava o arsenal quando algo atacou seu flanco direito, lançando-o contra a porta. Estava imobilizado, e podia sentir o toque gélido dos ossos da criatura sobre si. O oficial precisou reunir todas as suas forças para manter a criatura poucos centímetros afastada; não sabia se eram as garras que rasgavam seu tórax, ou o fedor oriundo de um mundo inconcebível que o fizera vomitar.
Então a cabeça do monstro explodiu em uma nuvem de fluidos, e ela caiu no chão, se contorcendo. Sims estava bem ali, com sua escopeta fumegando.
O comandante agradeceu com a cabeça, desajeitadamente.
“O senhor está ferido”, apontou Sims.
Sua túnica estava dilacerada, assim como a carne abaixo dela.
“Vou sobreviver”, disse, pressionando os ferimentos. “Mantenha-os longe”.
Sims se virou, abaixando por trás de sua vítima para eliminar outra besta que surgira no corredor.
Olson digitou sua senha e a porta do arsenal se abriu. Era um pequeno armário, grande o bastante para acomodar uma pessoa de pé, mas continha uma pequena coleção de armamento pesado. Ele retirou um flamer, viu que estava cheio de combustível e sussurrando uma prece, lançou um jato de chamas sobre um grupo de xenos prestes a sobrepujar a resistência mantida pela tripulação. As criaturas guincharam, cobertas pelo fogo, e fugiram, desorientadas, em direção aos tiros dos soldados.
Após alguns segundos de fogo desordenado, a equipe silenciou as suas armas. O corredor estava vazio, e com exceção da poeira, nada mais se movia em sua extensão.
Então ouviu-se um grito lancinante atrás deles.
Olson se virou e viu Madden surgindo em meio à fumaça. Pareceu flutuar por um momento, até que o comandante percebeu, horrorizado, que o tenente estava empalado em uma das garras do monstro, ostentado como um estandarte macabro. Madden morrera com o terror estampado no rosto.
“Escória xenos”, gritou Olson, substituindo a culpa pela raiva. Correu pelo corredor em direção ao inimigo, o flamer despejando vingança. Podia sentir a ira do espírito da arma, e não pretendia amenizá-la. A criatura emitiu um grito distorcido, coberto pelo fogo sagrado; deu alguns passos à frente, e por um momento Olson temeu que pudesse alcançá-lo, mas logo o monstro se curvou, espalhando no chão carne queimada e quitina enegrecida. Olson cuspiu no corpo fumegante, e caminhou de volta para a ponte de comando.
A batalha terminara. Das vinte fragatas imperiais, apenas duas permaneceram intactas; as demais eram carcaças fumegantes, tomadas pelo vácuo, mas vitoriosas. As duas bionaves xenos estavam em pedaços, e sua carga espalhada pelo vazio. Olson, cujos ferimentos tinham sido toscamente cobertos, observava os vestígios do conflito flutuando silenciosos na escuridão.
“Mensagem recebida da Atlas, comandante”, anunciou o novo técnico de vox; seu predecessor fora uma das centenas de corpos reunidas no compartimento de carga.
Olson consentiu com a cabeça e pegou o comunicador.
“Atlas, aqui é o Comandante Olson, da Horizonte. Qual o seu status?”
“Aqui é o Aspirante Huber, senhor”, disse a voz em meio a estática. “O Almirante Winters está morto, senhor, assim como todos os oficiais superiores. Sofremos graves danos, mas os tecnomagos reconsagraram os sistemas principais, com a graça do Imperador. Muitas baixas para contabilizar.”
“Recebido, aspirante. Estamos em situação similar. Com a morte do Almirante Winters, devo assumir o comando da frota… ou do que restou dela. Quero um relatório sobre os reparos a cada hora e-“
“Comandante”, interrompeu o adepto do auspex, em um tom baixo e grave.
“O que foi?”
“Comandante”, repetiu, como se não conseguisse prosseguir. Encarava incrédula o auspex.
“Adepta, relatório.”
“Uma grande sombra no auspex, senhor. Centenas de sinais. Vindo em nossa direção…”
Ele foi até técnica e observou a tela. Ela estava certa, uma grande massa de xenos estava chegando.
“Era apenas a vanguarda”, sussurrou. Encarou por um momento o vácuo, recebendo como resposta uma estranha presença, uma grande inteligência alienígena procurando por ele. Ele se recompôs e reabriu o vox.
“Huber, temos mais xenos chegando, pode confirmar?”
Após uma pausa, uma voz trêmula respondeu. “Positivo, comandante”.
“Temos de alertar o comando”, disse Olson. “Eles vão arrasar o sistema inteiro.”
“Como, senhor?”, questionou Huber. “Não temos sinal, eles estão muito longe. E a distorção…”, a voz trêmula não conseguiu continuar.
“Não temos escolha. Vamos tentar.”
“Através da distorção, comandante?”, Huber estava incrédulo. “Mas a sombra, a Cicatrix Maledictum… os navegadores…”, o oficial subalterno sussurrou uma pequena prece. “São muitos perigos. Não vamos conseguir.”
“Vamos morrer de qualquer jeito, se ficarmos aqui, assim como todas almas abrigadas neste sistema. Qual é o pior?”
Huber não respondeu, e Olson ficou grato por isso. Outras coisas poderiam ser piores, mas não valiam a pena serem mencionados.
“Aspirante, prepare a Atlas para alcançar a distorção”, ordenou Olson, em seu tom mais autoritário. Então, se voltou para seus tecnomagos. “Acordem o navegador. Calculem as coordenadas para o salto.”
O comandante olhou mais uma vez para os destroços adiante. Imaginou-os por todo o sistema, frotas e planetas inteiros destruídos. Sentiu um desconforto dentro de si, como um sussurro sem palavras, uma ameaça além da possibilidade de compreensão.
“Imperador, guie-nos”, disse, quando as luzes de emergência se acenderam e as sirenes soaram. Os lamentos do navegador através do vox eram perturbadores, e Olson fez um sinal de proteção ao encarar as expressões de temor da tripulação. Quaisquer horrores que enfrentaram não eram nada comparados ao que habitava o reino de terror que estavam prestes a alcançar. Mas precisavam fazer isto.
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O Sargento Copeland tocou o ombro do motorista e o veículo parou bruscamente.
“Ali”, disse, apontando para a tela do auspex. “Algo que não consigo identificar. Temos de investigar.”
O comboio de tauroxes atravessou as areias claras em direção ao casco negro no horizonte. Quando se aproximaram, Copeland espiou pelas vigias. Era uma fragata imperial, parcialmente soterrada, com apenas uma parte de suas portas sobre a superfície. Sofrera grandes danos, e estranhas formas pálidas se prendiam ao casco como carrapatos.
Os tauroxes pararam diante do naufrágio, e Copeland desembarcou.
“Comigo”, disse ao esquadrão que desembarcara em seguida. “Com cuidado. O Imperador vai nos proteger”.
Posicionaram-se com as armas em punho, aproximando-se lentamente da nave. Atrás deles, os outros esquadrões saíram dos veículos para formar um perímetro.
Copeland encontrou uma escotilha acessível e a abriu. Os mecanismos da nave tinham fritado, e as luzes piscavam em um padrão irregular. Seus homens o seguiram pelo corredor inclinado devido a posição da nave, caminhando entre paredes e piso conforme avançavam. Nenhum sinal de vida.
“Vamos até a ponte de comando”, anunciou o sargento, tomando a frente.
Conforme se aproximavam, viram que as portas da ponte tinham sido arrancadas. Escombros em todo lugar – cabos pendurados, buracos nas portas, marcas de garras no chão.
“O que aconteceu aqui?”, resmungou um dos guardas.
“Silêncio”, cortou Copeland. “Estou ouvindo algo”.
Uma voz. Humana, pensou. Sussurrando continuamente, embora ele não pudesse compreender as palavras, vindo além das portas destruídas.
Ele entrou no salão e parou para analisar. Corpos espalhados por toda a parte, o piso pegajoso por conta do sangue. Alguns caídos sobre os controles, outros esmagados contra a parede. Muitos parcialmente esfolados, segurando pedaços de pele com suas mãos ensanguentadas.
O comandante, identificado por seu uniforme esfarrapado, sentado em sua cadeira de comando, com os olhos arrancados.
Copeland encarou a figura medonha, segurando o vômito, e ia voltar, quando o comandante se moveu, encarando-o com seus olhos vazados.
“A sombra interna e a sombra externa, tudo arrasando em sua fome eterna”, sussurrou o oficial. “A primeira e a última, sombra mais antiga, cuja grandeza vai além da medid-“
“Pelo Trono”, sussurrou o sargento. “Como essa coisa sobreviveu a esse horror?”
“O olho, a mente, sempre faminto, sempre vigilante…” continuou o comandante. “Devo repetir, devo alertar… palavras… não tenho… não tenho pra dar!”, finalizou com tanta força que arrancou Copeland de seu transe.
“Devo alertar”, repetiu. “Alertar sobre o que?”
Mas o comandante parecia não ouvir o que estava sendo dito.
“Rasgando, arranhando, avançando sem hesitar”, continuou a sussurrar. “O olho, a mente…”
“Sua mente já era”, disse Copeland. “Não fala nada com nada. Devemos reportar tal heresia ao comando.”
Quando o esquadrão deixou a nave e retornou aos transportes, Copeland sentiu um incômodo em sua mente, como se garras tentassem escapar de seu crânio. Teve a impressão de ouvir novamente a voz sussurrante do comandante, então se voltou, esperando ver o oficial em frangalhos parado atrás de si.
Mas não havia nada além de sua própria sombra.