O Despertar Psíquico: O fraco e o forte
Neste conto de Mitch Denton, veremos que as forças incontroláveis do imatério são capazes de envolver mesmo o servo mais leal do Imperium.
Fenton parou ante os primeiros de seu esquadrão enquanto os três avançavam pelo prédio bombardeado do administratum. O sargento caphoriano sentiu seus níveis de adrenalina subirem e o seu foco aumentar no momento em que sua visão se estreitou. Enquanto alguns ficam inquietos e nervosos ante o combate, Fenton acreditava alcançar um inacreditável senso de clareza, como se o combate o aproximasse do próprio Imperador. Posicionando a coronha da lasgun na cava do ombro, ajustou a postura e tocou as costas do soldado à sua frente.
O grupo se moveu após alguns segundos, rápida e sincronizadamente através dos escombros da entrada. Tão logo a primeira combatente adentrou o local, voltou-se para os lados, direcionando sua atenção para um ponto cego da sala e prosseguiu, dando cobertura ao soldado seguinte. O segundo caphoriano fez o mesmo, voltando-se para o canto oposto e vigiando o outro lado.
As orelhas de Fenton reagiram aos estompidos de uma automática, tão próximos que tornava impossível localizá-los em um lugar fechado. Confiante que seus companheiros lhe dariam cobertura, continuou focado à sua frente, e avançou; através da mira da arma, estudou o corredor que descia para os demais setores do administratum.
Em seu coração, Fenton sentia uma estranha força incitando-o a continuar através da passagem escura, e logo ele se viu dando os primeiros passos neste intuito. Um dos soldados do esquadrão se uniu a ele, apoiando-se na parede oposta do corredor e acompanhando o ritmo de seu líder.
Apesar da audição atenuada, o sargento era capaz de identificar os passos dos outros esquadrões nos andares acima. Mesmo assim, nada escutava nas salas adiante. O ar ficou mais quente e abafado, e ele ficou inquieto, reposicionando o corpo para continuar a observar a escuridão através da alça de mira.
“Sargento”, disse o soldado perto dele, em um tom preocupado.
De repente, Fenton foi tomado por um mau pressentimento e deu meia-volta, apontando sua lasgun na direção do subordinado. “Abaixa!”
Disparou assim que o outro se jogou no chão, perfurando a frágil parede com rajadas laser. Moveu-se sem hesitar, através da passagem que levava à sala adjacente e entrou sem esperar que outro Guarda Imperial se reposicionasse.
Parou quando viu o corpo caído, mas não baixou a guarda, procurando quaisquer movimentos. O cadáver de aparência doentia podia parecer humano à distância, mas a pele descolorida e as cristas na testa claramente o identificavam como um dos adoradores dos xenos.
Sua companheira entrou correndo. “Pelo Trono, o que foi iss-“, disse, se aproximando para examinar o corpo. “Bem na cabeça, Sargento!” Então, olhou para a parede perfurada e se voltou para Fenton, abismada. “Como você sabia que essa coisa estava aqui?”
Fenton, tão preocupado quanto confuso, apenas encarou a criatura morta e respondeu, hesitante: “Eu ouvi um barulho…”
Assim que Fenton e seu esquadrão deixaram o prédio, perceberam uma animosidade entre o comandante do pelotão e o novo comissário designado para a divisão, um sujeito chamado Krenlan. Este era um homem de ombros largos e corpo volumoso, e um ar controlador que denunciava violência e brutalidade reprimidas.
“Comandante, você deveria ter feito incursões no distrito do manufatorum há dias. As ordens foram claras!” O comissário praticamente gritava no rosto do comandante, fazendo com que os soldados trocassem olhares preocupados.
“Sim, foram muito claras!” O oficial da Guarda manteve a altivez antes de retrucar. “Nossas instruções foram pacificar a cidade, o que significa investigar prédio por prédio, e ter a maldita certeza de que exterminamos toda aquela escória”.
Krenlan mal podia conter sua ira. “Você não-“
“O que eu não vou é receber ordens de um burocrata nervosinho”, interrompeu o líder do pelotão. “Deixe-me refrescar sua memória, comissário, você não tem autoridade acima da minha nestas questões. Não arriscarei a integridade dos meus subordinados deixando o inimigo em nossa retaguarda. Agora saia da minha frente!”
Antes que o oficial pudesse dar alguns passos, o comissário se virou para ele e sacou a pequena pistola bolter que mantinha acorrentada à sua placa peitoral. O comandante não teve tempo de reagir quando a arma foi apontada em sua direção, e estremeceu após um disparo.
Fentou assistiu, horrorizado, o corpo de seu comandante atingir o solo. Krenlan se dirigiu aos soldados enfileirados na rua, com os olhos cheios de fúria. “Vou ser bem claro, a covardia só tem uma recompensa na Astra Militarum! Até agora, vocês foram negligentes em seus deveres, e esse tempo acabou. Vocês seguirão minhas ordens, agora, fui claro?”
Fentou cruzou o olhar com Krenlan quando o comissário silenciou, e se arrepiou com a loucura que conseguiu perceber.
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Naquela noite, Fenton e seu esquadrão se abrigaram nas ruínas de um complexo do manufactorum. Uma pequena fogueira ardia em meio ao grupo, e embora sua fumaça fosse asfixiante naquele ambiente fechado, todos eram gratos ao calor fornecido pelas chamas. Os sodados estavam silenciosos, perdidos em seus próprios pensamentos.
De repente, um deles falou. “Soube que perdemos contato com as defesas orbitais além das fronteiras…”
O clima se tornou mais sombrio. Todos sabiam o que aquilo significava.
“Pode ser um defeitos nos radares de novo”, argumentou outro, embora parecesse duvidar de suas próprias palavras.
O primeiro a encarou. “Você realmente acha isso?”
A outra apenas deu de ombros.
Uma voz fria oriunda de fora quebrou o silêncio. “Sargento, eu sugiro não permitir que seus subordinados se envolvam em conversas inúteis e potencialmente subversivas”.
Krenlan adentrou o círculo e as luzes tremulantes da fogueira tornaram suas feições bem mais assustadoras.
“Soube que você deu sorte hoje, Fenton”. O olhar frio e calculista voltara aos olhos do comissário. “Uma reação quase que sobrenatural, pelo que ouvi”.
Fenton podia sentir o olhar clínico sobre si, penetrando sua alma e o colocando contra a parede. O sargento também não fazia ideia do que acontecera; nunca tivera esses pressentimentos antes. Ele também tinha a impressão de que se desse mais detalhes sobre o que tinha sentido, o impiedoso comissário poderia utilizá-los contra si. Mas Krenlan continuava a encará-lo, esperando uma resposta, e Fenton sentiu o calor aumentar novamente, sua visão se estreitar, e um zumbido em sua cabeça.
Começou a perder o controle de si, mas um de seus companheiros, farejando problemas, interrompeu: “Foi pura sorte, senhor. O sargento nasceu virado para a Santa Terra”.
Os outros concordaram com a cabeça, mas o comissário não tirou os olhos de Fenton. “É mesmo?”
Krenlan deu as costas, mas se voltou novamente na direção do sargento.
“Estou de olho, sargento. Estou ansioso por ver seu desempenho no campo de batalha, especialmente após os últimos acontecimentos”. E com essas palavras, partiu.
Fenton respirou profundamente quando finalmente relaxou o corpo extremamente fatigado. “Eu já vou”.
Ele se separou do grupo; o medo congelando suas entranhas à medida que a conversa dos soldados desaparecia com a distância.
A sensação de queda era clara. A escuridão à sua volta não dava pistas de onde ele estava, mas o calor, e o ar fétido soprando em seu rosto indicava que ele estava caindo em grande velocidade. A primeira reação de Fenton foi o pânico, debatendo-se inutilmente como se tentasse atenuar a queda. Em meio à confusão causada pelo terror, ele nem pensou em como tinha chegado ali. Tudo que lhe ocorria era se seu desespero teria fim ao se chocar contra o solo, ou contra qualquer estrutura antes dele.
Lentamente, a porção racional de seu cérebro começou a reagir. Embora seu corpo ainda estivesse sob efeito de um inebriante coquetel de adrenalina e medo, Fenton começou a perceber mais coisas sobre onde estava.
Primeiro, percebeu que as correntes de ar que o golpeavam pareciam ir e voltar, o que não faria sentido se ele estivesse caindo. De qualquer forma, ele esperava que a violência do fluxo aumentasse exponencialmente conforme sua velocidade aumentava, mas o soldado notou um ritmo nos ventos que sacudiam seu corpo como um boneco.
Ele sentia como se os nauseantes ventos fossem da respiração de alguma besta carniceira, cujo hálito o envolvia em um fétido ir e vir. Mas ainda não conseguia entender a ausência de peso que sentia, nem o fato de que suas roupas não se moviam, apesar da sensação de movimento. Nada ali fazia o menor sentido.
De repente, Fenton sentiu seus braços e pernas sendo arrancados violentamente, e seus músculos convulsionaram em reação à força a que foram submetidos. Sentiu seus ligamentos tensionados a fim de manter seu corpo íntegro; sendo torcido e esticado, instintivamente fechou os olhos, apesar da escuridão, e emitiu um grito visceral de dor, resultante do grande sofrimento que passava.
Em resposta, inúmeros chicotes surgiram da escuridão e o envolveram, começando por seu tronco e se espalhando pelo resto do corpo. Ganchos e espinhos ao longo dos violentos tentáculos rasgaram suas roupas e morderam-lhe a pele. Cobriram-lhe a cabeça e o rosto, arrancando o ar de seus pulmões em um aperto cada vez mais forte, afundando em suas entranhas e deixando marcas de queimaduras ao longo de seus músculos.
A mente de Fenton se despedaçou em dor; de alguma maneira permanecia consciente, mas todo seu ser estava tomado por um terror ainda maior do que o pânico que lhe acometera momentos antes. Ele tentou se debater, se libertar, mas seus membros não tinham nem força, nem controle, tornando seus movimentos lentos e descoordenados.
Assim que acreditava estar prestes a sucumbir aos tormentos, sentiu um súbito fluxo de ar em seus pulmões. Sua visão retornou lentamente, e ele percebeu que podia se mover novamente conforme olhava em volta, atordoado.
Era noite, e seu esquadrão estava à sua volta, dormindo profundamente. Seus pulmões ainda estavam em plena atividade, tentando levar oxigênio ao resto do corpo. O sargento tentou entender o que se sucedera; sua cabeça doía terrivelmente, e mesmo desperto, os horrores que sonhara ainda pareciam tão reais quanto no momento em que foi cativo do próprio inconsciente.
Fenton ignorou a exaustão e tentou se levantar, e um entranho incômodo surgiu em sua mente. Cambaleante, o soldado sentiu dores lancinantes por todo o corpo, e ainda incerto do que iria descobrir, retirou a jaqueta e observou o estado de seu tronco. Ele parou bruscamente, e ao perceber o que havia, voltou a hiperventilar.
Distribuídos de forma irregular, uma rede de cortes cobria toda sua pele. Além dos cortes que sangravam, haviam buracos onde os espinhos tinham rompido-lhe a pele e penetrado a carne.
Fenton conseguiu sair da construção em ruínas e se afastar o máximo dos outros antes de pôr pra fora tudo que tinha no estômago. Se deitou na rua, tremendo, e o vento frio eriçou os pelos de sua nuca quando ouviu os passos lentos de botas, cada vez mais próximos.
“Ora, ora, o que temos aqui?”, perguntou Krenlan em um tom irônico.
“Fique longe!” Fenton se ergueu, vestindo rapidamente a jaqueta para esconder as marcas em seu corpo, e a pressão fez sua cabeça latejar. “Sabe o que eu acho, sargento?”, os olhos do comissário brilharam sob o luar. “Eu acho que você está escondendo algo”.
Krenlan começou a circular calmamente Fenton, que percebendo que tinha deixado sua arma com o resto do equipamento, sentiu-se como uma presa capturada pela armadilha de um predador.
“Segredos podem ser perigosos”. O sargento observou o comissário tocando o punho da espada. “Para todos os envolvidos”.
“Não sei o que você quer dizer”, retrucou Fenton.
“Ah, eu acho que sabe.” Krenlan suspirou, então parou para observar o sargento com interesse genuíno. “Você acha que é o único?”
Fenton sentia novamente o zumbido em sua cabeça, e o ar à sua volta crepitava de estática.
“Vimos isso acontecer bastante com a chegada da colméia”, continuou o comissário. “Principalmente entre os fracos e corruptos, como você”. O sorriso frio voltou. “Perder o pouco controle que têm sobre suas habilidades profanas”.
“Do que você está falando?” – o sargento sentiu seu medo se tornar algo mais intenso.
“Você sabe o que eu tenho de fazer”, respondeu o comissário, segurando o punho de sua espada com mais força.
Com o cérebro tomado pela dor, Fenton saltou sobre Krenlan, e tudo em volta explodiu em uma grande esfera luminosa. Ele mal percebeu seu corpo sendo jogado para trás, a sua consciência que desvanecia, nem a loucura que agora vinha à tona, destruindo qualquer controle que já tivera um dia.