O Despertar Psíquico: A crença mortífera
De Andy Clark. Original aqui.
Sou vigiado pelas gárgulas enquanto me preparo para matar.
Seus olhos de pedra me encaram sem piscar, enquanto alongo lentamente minha musculatura. Elas observam quando regulo minha respiração e sinto os batimentos acelerarem em meu peito.
Observam-me há dezesseis dias, e durante esse tempo me movi tão pouco quanto elas. As chuvas vieram, encharcando tanto sua couraça rochosa quanto minha synskin negra. Os trovões igualmente explodiram sobre nossas cabeças, assim como os relâmpagos, cujo fulgor precisou ser suprimido pelas lentes de minha máscara; posso dizer que sofri um pouco mais as intempéries que meus companheiros de pedra. Eles não se importam com o mundo à sua volta, assim como eu.
Nisso somos iguais.
Nossa semelhança, contudo, precisou terminar. A indiferença deles quanto às multidões fervilhantes pode continua, mas não posso me dar ao luxo. Se meus auspexes estiverem corretos – e costumam estar – então meus deveres com os habitantes deste mundo logo terão início.
Uma centena de metros abaixo. Vinte e três metros à esquerda. Lá está ele. A ressonância cardioespectral me informa seu distintivo ritmo cardíaco, identificado entre centenas de milhares. Uma sutil arritmia que indica um corpo mantido além de sua duração natural, através de tratamentos rejuvenescedores; uma pequena falha na válvula mitral, causada por um caso de sanguamori infantil.
Um jovem de estirpe menos nobre não sobreviveria à doença. A família do Cardeal Jenguai estava disposta a pagar quantias exorbitantes para garantir a sobrevivência de sua linhagem.
Tinham planos para ele. Ambições.
Ergo-me lenta e suavemente. O movimento é fluido como mercúrio liquefeito, e feito ao longo de longos três minutos, para confundir quaisquer detectores de movimento. Igualmente lento, posiciono meu rifle exodus, e permito que o espírito de minhas lentes comunguem com o de minha arma. Velhos amigos, tais espíritos; matam muito bem em conjunto.
Às vezes, durante as silenciosas semanas de espera de um alvo para o outro, me questiono se sou apenas um meio de transporte que minhas armas e equipamentos utilizam para tocaiar sua presa.
Sei que tais pensamentos flertam com a heresia; meu corpo, mente, e espírito foram forjados à perfeição ao longo de décadas de treinamentos no Templo Vindicare. Sou uma arma viva do Officio Assassinorum, tão superior ao humano ordinário quanto este é superior ao gado que cria, ou aos parasitas que expurga. Para cumprir meu ofício, não necessito arma ou equipamento, mas seus espíritos me servem, como deve ser com toda e qualquer máquina em relação à vontade humana.
Eu permito que meu rifle aja. Direciono o foco de minhas lentes.
Sem mim, nada são. Mas com eles, sou mais ainda mais perigoso.
Ponho de lado tais divagações, apagando os pensamentos aleatórios, um por um, enquanto me foco em meu algo. Isso sempre acontece após um longo período de hibernação mental.
Observo sobre a marquise das gárgulas e vejo os pedintes enchendo a Praça do Santo Apelo, aguardando o discurso do Cardeal Jenguai. Milhares e milhares de presenças irrelevantes se espremendo sob a estrutura do Cathedrum Redemtor Immorti, como se fossem pisotear uns aos outros.
Talvez alguns o façam. Mas não me importo com isso.
Tudo que me importa é o pequeno homem de rosto sombreado e vestes de cardeal que agora desce de seu servo-palanquim e se dirige à multidão. Está nas ameias, seis metros acima de seu rebanho. De seu púlpito blindado, estendem-se as asas douradas da Aquila, do qual se projeta um poderoso campo de força.
Que não será nenhum obstáculo.
Cruzados Eclesiarcais com espadas e escudos guarnecem os pés do palco. Adeptas Sororitas reforçam a linha, seus bolters prontos e olhos vigilantes. Acima de todos, naves da milícia planetária pairam como sombras protetoras no céu noturno. Casthac se encontra no coração de uma zona de guerra; o Cardeal deve ser protegido a qualquer custo.
Mas eles não podem protegê-lo de mim.
Apenas ele pode fazê-lo; quando Jenguai limpa a garganta, segura as bordas do púlpito e ergue-se sobre a multidão abaixo, ele não faz ideia de que seu sermão também é sua defesa.
Neste momento, não sou Kharun Shase. Não sou um assassino do Templo Vindicare. Sou simplesmente uma ferramenta do Imperador. Se Jenguai falar falsamente, será o o Imperador que irá abatê-lo; meu corpo e meu rifle serão Seus instrumentos.
Não é comum que eu precise esperar desse jeito; minhas vítimas normalmente são cadáveres no instante em que aparecem diante de mim. Claro que normalmente meus mestres têm certeza das perfídias do alvo antes de me enviarem.
O Cardeal Jenguai é diferente. Não o homem propriamente dito, visto que não é o único cardeal. Tem a ver com a natureza da zona de guerra na qual dirige seus sermões, que reúne três crenças concorrentes, tornando difícil distinguir entre heresia diabólica e lealdade fervorosa.
Sendo assim, fui incumbido com uma tarefa incomum no cumprimento desta missão. Devo assistir o discurso do Cardeal, julgar se ele fala a verdade do Imperador ou se sua mensagem está corrompida com algumas das duas crenças divergentes que se proliferam neste sub-setor. Outros tentaram identificar heresias nas pregações deste homem e falharam, e as suspeitas permaneceram.
Ele é um talentoso orador.
Amado por seus fiéis, a ponto de se arriscarem serem pisoteados por seus pares, pela mera visão deste homem que veneram como se fosse um santo.
Se ele realmente pregar a vontade do Imperador, ele é um instrumento da vontade do Imperador assim como eu. Se, como temem alguns, estiver sutilmente maculado, cada uma de suas palavras é uma gota de veneno nos ouvidos das massas. Sendo assim, é meu dever silenciá-lo.
Ele fala, e suas palavras se projetam de alto-falantes nas extremidades do palco, e o silêncio toma conta da multidão.
Eu também silencio, tal como as gárgulas que aguardam ao meu lado; Escuto as palavras do pretenso santo, e aguardo o veredito do Imperador.
Seu sermão me alcança, capturado pelos receptores de áudio de minha máscara, tão claro como se eu estivesse parado ao seu lado. Ele fala com maestria. Prega sobre inimigos externos, sobre a vigilância sobre os inimigos internos. Fala dos perigos do desconhecido. Fala da heresia da descrença e repreende seu público por sua capacidade de acolher o pecado. Ele exige mais deles. Eles escutam, extasiados, e eu realmente acredito – por mais que eu considere a existência das outras influências – que eles tentarão seguir suas instruções.
Enquanto ele fala, acesso os implantes neurais em meu cerebelo, instalados para esta missão. Peço aos seus espíritos que vasculhem as inúmeras horas de vídeo, grampos e transcrições Inquisitoriais. Não infectam minha mente com os dogmas heréticos cuidadosamente armazenados neles; pelo contrário, os micro-cogitadores absorvem o sermão apresentado neste exato momento e comparam cada palavra do Cardeal com todos os discursos heréticos ali contidos.
Um deles, pelo que sei, foi corrompido com os devaneios do Bem Maior, credo do Império T’au. O outro contém a oratória envenenada e as falsas escrituras do Culto dos Filhos das Estrelas, que anseia em conspurcar seus corpos com as imundícies do Grande Devorador.
Sinto um tremor em meu olho direito enquanto o processo continua. Um movimento mínimo, mas que desprezo e lamento pelo tamanho de suas implicações. É a prova de que, naquele momento, máquina perfeita que é minha mente percebe a presença de algo impuro. Anseio pelo momento em que os microimplantes possam ser removidos, e meu corpo, restaurado à sua absoluta pureza.
Contudo, como meu Mestre costuma repetir, “é necessário”.
O Cardeal continua falando, inconsciente de que um micrograma de pressão de meu dedo indicador é tudo que o separa de sua aniquilação. Enquanto discursa, meus implantes concluem a pesquisa. O fazem cuidadosamente, apresentando cada frase ou dogma devidamente censurado e retirado de contexto, para prevenir qualquer chance de corrupção de minha mente. Mesmo assim, consigo visualizar uma trama de similaridades entre todas elas.
Servir a uma causa maior parece ser um tema recorrente nos discursos do Cardeal, e aparentemente, ele fala do Imperador. Mas o T’au Empire fala do Bem Maior, assim como os Cultos Genestealer entregam-se inteiramente aos malditos Filhos das Estrelas. Tais correlações são inconclusivas.
Os implantes então me avisam de mais de uma centena de correlações linguísticas entre as palavras do Cardeal e a noção da tirania da verdade. A Crença Imperial é a única religião verdadeira da galáxia. Todos os outros sistemas são falsos, e seus seguidores são tolos, na melhor das hipóteses, sendo provavelmente ameaças que devem ser removidos dos domínios do Imperador. Todos sabem disso. Mas enquanto analiso os dados se entrelaçarem, vejo que esta crença também está enraizada nas crenças que ameaçam corromper a população de Casthac. Esta correlação também precisa ser desconsiderada.
E assim por diante: vigilância contra os inimigos da fé, o direito absoluto de governar, a certeza de que esta crença é a única solução para os males da galáxia, a segurança de que é o único caminho pelo qual a Humanidade será salva, ao passo de que outras fés a levará para um abismo do qual não há retorno. Um sistema se funde com o outro, até que percebo apenas uma verdade.
Todas as demais crenças da galáxia roubaram seus princípios e convicções da palavra do Imperador. E como todo reflexo, são distorcidos e não têm substância.
Mas o que dizer do alvo lá embaixo? O sermão do Cardeal está chegando ao seu desfecho, e apesar de ter submetido suas palavras à análises cogitacionais que envergonhariam uma sala cheia de agentes de inteligência, estou seguro quanto à sua lealdade. Se ele estivesse falando abertamente de livrar-se dos grilhões da opressão imperial, ou convertendo-os à adoração ao Bem Maior, a questão seria facilmente resolvida. Se ele fosse mais descarado, então nada disso seria necessário além de minha presença e a de minha arma.
Se meus implantes cerebrais pudessem me mostrar exemplos mais explícitos de linguagens ou imagens correlatas, eu pudesse fazer uma distinção melhor… Mas isto acarretaria num risco inaceitável à minha santidade enquanto um agente do julgamento imperial.
Imóvel sob os auspícios das gárgulas, mantenho meu corpo na mais absoluta inação, a arma preparada, enquanto em minha mente se apressa em processar tudo que foi visto, ouvido e aprendido.
O fato é que embora pensamentos heréticos possam chamar minha atenção, os sistemas de crença distintos apresentados pelos pregadores do Império, dos Genestealers e dos T’au são tão similares que, sem certas afirmações explícitas, são impossíveis de distinguir.
Não me surpreende que essa zona de guerra seja essa confusão.
No fim, minha decisão é simples.
Não posso confiar nas evidências para condenar, nem para salvar o homem para o qual fui enviado como algoz. Meus sentidos mortais, por superiores que sejam, ainda são falíveis. Deixam margem para a dúvida. Fui colocado em uma posição impossível por aqueles que deveriam saber mais, ao invés de corromper a perfeição de meu serviço ao Imperador.
Sou incapaz de emitir um veredito. Apenas o Mestre da Humanidade pode fazê-lo.
Se sou incapaz de emitir vereditos, então o ato de julgar foi tirado de minhas mãos. Retornei ao meu propósito original, uma mera arma, uma ferramenta do Imperador.
Mas ele não mo enviaria aqui, e agora, sem um propósito.
O Cardeal deve ter sido corrompido por uma das duas crenças alienígenas. Ele está condenado simplesmente porque estou aqui.
Meu dedo pressiona levemente o gatilho. O rifle oscila levemente em minhas mãos, e seu poderoso recuo é restrito por uma tecnologia tão sagrada que eu nem ouso tentar compreender seus mistérios.
No palco, o sermão do Cardeal é subitamente interrompido.
O julgamento do Imperador foi cumprido.
A dúvida é um pecado que não pode ser alimentado.
Jenguai não mais pregará.