O Despertar Psíquico: Olhar Penetrante
Callum Davis nos apresenta a próxima fase do Despertar Psíquico – o Ritual dos Malditos; através das visões de um membro da elite psíquica do Império – um Prognosticário dos Grey Knights.
Todos os filhos de Titã sabiam que esse dia viria. Magnus, o Vermelho, Primarca dos Thousand Sons retornara. Pelas graças do Imperador, foi derrotado em Fenris, ou assim pensava Lushian Adantor. Mas o Rei Escarlate não seria detido facilmente; já esperava-se que o estranho maquinário conhecido como Speculum Infernus voltasse a funcionar, anunciando seu retorno.
Lushian ajoelhou-se no Augurium, a câmara espelhada no topo do Pináculo Prateado. Lá, os poucos Prognosticários – sua ordem – atuavam no monitoramento dos abalos psíquicos precursores de invasões demoníacas. Abriu os olhos e observou o próprio reflexo. A luz de velas envolvia o lugar com seu manto cálido, a despeito do frio contínuo; cada respiração de Lushian era um sopro de vapores naquela atmosfera. Gotas de suor escorriam em sua testa enrugada, manchando a túnica já manchada pelos sais. As rugas também marcavam a área em volta dos olhos e da boca do rosto castigado, embora tivesse deixado Titã pouquíssimas vezes. O cabelo curto era impecavelmente branco, e seu olhar revelava uma testemunha de horrores capazes de levar mortais ao suicídio.
Apenas cinquenta anos, pensou, mas pareço ter mais de um século. Essa era a vida de um Prognosticário.
Uma acólita ajoelhou atrás dele, pena e pergaminho prontos para registrar qualquer ocorrência. Ele podia perceber os tremores em sua pele, mas a adepta mantinha-se firme, apesar das vestes inadequadas para o frio. Lushian não sabia o nome dela; e eles morriam antes que descobrisse.
Foco, pensou Lushian.
“Novamente”, avisou à adepta o que haveria de ocorrer. Ele fechou os olhos e concentrou toda sua energia no som do Speculum Infernus. O dispositivo emitiu chiados e vapores. Estranhas energias faiscavam e folhas e mais folhas de pergaminho eram lançadas no chão frio.
Sua mente visualizou um mundo devastado por raios púrpuras que caiam do céu. Viu vastas planícies de vidro rodeadas por cadeias montanhosas, das quais brotavam olhos irrequietos e tentáculos monstruosos. Rios de magma verde borbulhavam montanha acima, e criaturas róseas perambulavam em volta, divertindo-se sempre que um dos seus caía no fluxo incandescente.
Hordas de criaturas cerúleas, parte homem, parte ave, parte besta perambulavam pela região, guerreando entre si e com outros clãs de mutantes. Muito deles tinham arrancado um dos olhos; outros tinham mais de uma cabeça, membros adicionais ou tentáculos brotando ao longo do corpo. Toda sorte de fauna, combinando metal e natureza demoníaca habitava as formações cristalinas sob os vapores que tingiam o céu com cores fantásticas.
Lushian sentiu um incômodo em sua mente e pausou. Pode ser um deles, pensou, ou seria só a pena arranhando o pergaminho? Não sabia.
“Vejo outro mundo agora”, disse. Nem sempre ele falava de suas visões; mas não sabia o que o motivava descrevê-las agora. Sabia que o fazia, e que a Adepta estava a postos. “Um mundo estéril. Um deserto quase vazio, tomado por ruínas de uma cidade ancestral. Vejo as cinzas de pergaminhos sendo levadas pelas tempestades de areia, e os ventos escavando pirâmides e estruturas que em seu tempo eram o tesouro deste mundo.”
Mas as visões mudaram. Inúmeras pessoas em adoração a um guerreiro alado gigante, de pele avermelhada. Lágrimas de alegria escorriam por seus rostos quando se prostraram, as mãos unidas em oração. Suplicavam, agradeciam e adoravam.
A imagem mudou novamente. As mesmas pessoas, jogadas em valas, o sangue cobrindo seus corpos nus; cortes de faca em seus pescoços. As expressões de alegria transformadas em faces aterrorizadas. Então ele viu uma guerra apocalíptica, falanges de guerreiros em azul e dourado disparando bolters enfeitiçados em civis, e hordas de demônios alados aterrorizando as torres das megálopoles Imperiais.
“Vejo morte, fogo e sangue”, disse Lushian, como se não controlasse a própria língua. “Grandes máquinas demoníacas destruindo sem represália, arrasando construções, eviscerando e esmagando inocentes. Os gritos das vítimas entrecortados pelas gargalhadas dos demônios enlouquecidos, incendiando casas, capelas e cathedrums“.
Aqueles que escapavam dos monstros caíam durante a fuga, convulsionando. Lushian ouvia seus ossos rachando e partindo em seus espasmos, e seus corpos assumindo posições naturalmente impossíveis; os gritos de agonia iriam atormentá-lo até o fim de seus dias. As convulsões tornaram-se intensas, e a pele das vítimas mudou de cor: tons amarelados, então vermelhos, então púrpuras, então azuis. Chifres brotavam em sua pele, e também se contorciam. A mutação era tão drástica que alguns eram reduzidos a massas disformes.
A visão mudou tão rápido quanto surgiu; cavaleiros de verde e de prata lutando ombro a ombro, eliminando as crias malditas do Arqui-inimigo diante da pirâmide cujo pico rasgava o céu infernal. Viu os mesmo cavaleiros mortos, os corpos recolhidos por mutantes e feiticeiros. Viu um guerreiro que só podia ser o Mestre Supremo Kaldor Draigo, pisando sobre o cadáver de Magnus, o Vermelho, e sua Titansword completamente enterrada no crânio do Primarca.
“Adepta, registre a presença do Mestre Supremo”, disse.
A visão mudou, e desta vez, Draigo jazia empalado pela Lâmina de Magnus, e centenas de guerreiros prateados despedaçados ao redor.
Quanta confusão, pensou Lushian. A despeito de seus esforços, o caos das visões era inescrutável. Circunstâncias contraditórias atacaram cada tentativa de obter clareza sobre os eventos vindouros. Não tinha dúvidas que vira Sortiarus, Próspero e seus mundos vizinhos, assim como a morte e a miséria trazidas com o Rei Escarlate, mas qual o significado de tudo aquilo? A mente de Lushian percorreu os trágicos eventos testemunhados, e a visão das vítimas de tais holocaustos continuava viva em seus pensamentos.
Sentiu uma dor excruciante no interior de sua mente. Vítimas de um sacrifício, pensou. Seria um ritual? Com qual propósito?
Foi assaltado por mais visões, cada uma mais terrível que a anterior; rostos malignos e guerras devastadoras impediam-no de concentrar-se no ritual. Lushian já tinha visto tais coisas bem antes de sua época como Prognosticário.
Sinto tua presença, inimigo, pensou. Teus esforços apenas me aproximam da verdade. Tu me distrais porque temes que eu descubra.
“A menos que eu queira que acredites nisso, cavaleiro”, respondeu uma voz maliciosa.
Lushian hesitou; nunca um servo do Arqui-inimigo o alcançara naquela câmara.
“Com inabalável coragem triunfaremos, e nenhuma mágika nos subjugará. Somos os portadores da vitória!”. As conhecidas palavras do Cântico de Absolvição tranquilizaram-no quase que instantaneamente. “Bênçãos celestiais estão sobre nós, cabe a nós dominar o imatério. Mesmo que a feitiçaria se levante contra nós, será completamente banida para o vazio.”
Lushian retornou às perscrutações. Viu as covas, os cadáveres, e sacerdotes encapuzados portando lâminas onduladas antes fossem substituídos por pesadelos e monstros. Eles avançavam com suas garras, como se pudessem atingi-lo. O Grey Knight gerou um pulso de energia psíquica, afastando as criaturas com uma explosão de luz dourada. Os monstros urraram de dor, protegendo seus olhos negros de tamanho esplendor.
“Mesmo que a magia e o encanto nos detenha, o Imperador nos verá vitoriosos”, gritou Lushian. “Nenhuma maldição atingirá nossa vontade, pois nosso propósito é tão forte quanto o aço.”
Avistou os sacerdotes. O sangue de cada vítima jorrando a cada golpe de adaga. As mãos dos encapuzados cobertas com o fluido vital, e embora não pudesse ver seus rostos sob os mantos, tinha a certeza de que ostentavam largos sorrisos. Criaturas desprezíveis, pensou.
Lushian assistiu os sacerdotes descartando as facas, cegas devido ao uso contínuo. Sem perda de tempo, acólitos entregavam-lhe outras, para que sacrificassem novas vítimas.
“Você viu demais, cavaleiro”, disse a voz. “Mas não sabe o que viu. É verdade ou mentira? Para o Senhor da Mudança tudo é ambos, ou nenhum.”
“Nenhuma artimanha desleal nos deterá!”, respondeu Lushian. “Pois somos os Escolhidos do Imperador!”
Nove indivíduos, em armaduras de azul polido e ouro, elmos ornamentados e portando longos cajados com símbolos malditos, formaram um círculo. Gesticularam com as mãos de maneira idêntica, manipulando as poderosas energias que fluíam das covas cada vez mais cheias de corpos. A tensão de seus esforços era óbvia para o Grey Knight, mas nenhum deles fraquejou ante o desafio de reunir tamanho poder bruto.
Magnus posicionou-se ao centro do círculo, resplandescente em sua armadura dourada com lápis lázuli, o próprio mal encarnado. Poderosas pernas terminadas em garras, como as patas de antigos répteis gigantes. Asas abertas, tão largas quanto as de uma aeronave, reluzindo em fúcsia e violeta, que sob a luz mutante de Sortiarus, ganhava tons de cobalto, safira e turquesa. O poder psíquico corria por suas monstruosas mãos, manipulado com a serenidade de um verdadeiro mestre, seguro de sua habilidade de criar maravilhas inimagináveis para os reles mortais.
O ódio ardeu no coração do Prognosticário. Monstro. Traidor. Teremos sua cabeça em uma estaca nem que demore dez mil anos, pensou com amargura, cerrando os punhos com tanta força que as unhas penetraram-lhe a carne.
A voz zombou: “Quanto ressentimento! Você não sente nem um pouco impressionado? Não sente que a semente da inveja já começou a brotar, lentamente? Te perdoarei por isso, cavaleiro.”
“O Imperador guardará nossas Almas!”, respondeu Lushian. “Nenhuma perdição nos derrubará!”
Lushian sentiu sua energia se esvair. A voz que o assaltara era poderosa; qualquer um mais fraco do que um Grey Knight seria facilmente destruído. Manteve-se firme, forçando-se a imergir novamente nas visões. Cada fragmento de informação era imprescindível para que seu Capítulo pudesse responder a tempo, e de forma apropriada.
Assistiu todo o ritual. Dezenas de milhares de servos de Magnus assistiram os sacrifícios continuarem, e o poder emanado das covas. As hordas vibravam, gritavam, gemeram e urravam. Gritavam preces a Tzeentch e a Magnus. Pediam a morte de seus inimigos. Pediam sangue. E pediam para que o material se tornasse imaterial.
Para que tudo isso?, perguntou-se. Que mal fará? Que ameaças provocará? O olhar de Lushian retornou a Magnus, seu ódio o exigia. Com todo meu coração, mente e alma, desejo a tua morte. Tua memória será banida da galáxia junto com teus filhos imundos e teus servos patéticos. Isso será feito pelas mãos dos Grey Knights, e nós sorriremos.
Lushian encarou Magnus, que encarou de volta. O único olho do Demônio olhava dentro da alma do Cavaleiro.
“Retira-te, Adepta!”, gritou Lushian, antes de ser consumido pela dor, e tudo escurecer.
Abriu os olhos, a respiração pesada, os corações palpitando e pulmões levados ao extremo para alimentar as pesadas demandas do corpo. Estava deitado, encharcado por um suor frio, e castigado por dores lancinantes. Rangeu os dentes, tentando levantar, e sentiu um gosto metálico.
Lembrou da Adepta e olhou para onde ela costumava ajoelhar. Restara apenas a carcaça carbonizada, as mãos ainda em posição de tomar a pena e o pergaminho. Parou por um instante, abaixando a cabeça em reverência.
“Cumpriste teu dever”, disse, e não pensou mais a respeito. Ela fez o que o Capítulo lhe pedira, e pagara o preço que todos esperavam. Se ficara ali por opção, ou se não teve tempo para fugir, não importava.
“O ritual precisa ser detido”, disse enquanto se ergueu e limpou a testa encharcada com as costas da mão. Sentia-se cinquenta anos mais velho ao deixar a câmara.
“Precisa?”, respondeu a voz, sem a costumeira zombaria. “Não tenha tanta certeza, cavaleiro”.