O Despertar Psíquico: A luz purificadora
De Colin Cubbon. Original aqui.
O Khorulam Iâmbico realizou as últimas manobras em direção à estação. Silenciosamente, o transporte deslizou em meio às majestosas espirais dentadas que formavam a superestrutura da estação espacial. Cada um das protuberâncias, tão grandes quanto a Khorulam, serviam como ancoradouros, e possuíam elas próprias protusões menores, que continham outras menores, e asim por diante, em um fractal estonteante. Observada a partir de seu eixo, a estação parecia um floco de neve, com meia dúzia de docas principais.
Erro, pensou a logicus Dunal Rovarrin, o Fylachor Terminus é como um componente da máquina celestial do Onimessias.
Nada existia no sistema estelar Metalica além da estação, cuja origem marciana era inegável. Até encontrá-la, Dunal argumentava ser um maravilhoso exemplar da re-expansão do 32º Milênio. Trichine Jorrdeh, Tecnopadre e supervisor de Dunal, respondeu-lhe severamente que aquilo era um marco da hegemonia marciana, devendo ser deixada ali, nos confins daquele sistema.
A Khorulam atracou a poucos quilômetros do píer mais próximo, no lado escuro do Fylachor Terminus, cuja silhueta só era perceptível em meio às estrelas graças às poucas luzes ativas da nave. Acima de sua estrutura, podia se ver a estrela que dava nome ao sistema, ainda que sua distância dali a tornasse indiscernível a olho nu.
A Tecnomadre permaneceu no convés escuro e apertado da estação, concentrada em controlar a gigantesca ponte umbilical da espaçonave.
Com dezenas de metros em diâmetro, o membro mecânico esticou-se lentamente, avançando pelo espaço entre a nave-forja e a estação. Grandes dissipadores e estranhos dispositivos parecidos com campos de força invertidos se espalhavam por sua superfície, bem como armazenadores de energia, cujas grades deixavam escapar luzes turquesa.
Também haviam escotilhas, e grandes portais de material hiper denso selando cada intersecção da grande tubulação. Pareciam portas de cofres, ou portais de uma masmorra, contendo prisioneiros perigosos.
Os mecatentáculos do trichine Jorrdeth estavam conectados aos controles da tubulação, assim com os de Dunal, e através deles, o Tecnopadre pôde sentir a distração de sua colega e enviar um pulso energético para seus terminais. Ela foi forçada a recalcular rapidamente diversos parâmetros.
“Fique atenta, logicus!”, admoestou o trichine. “Isso não é uma plataforma orbital. Precisamos trabalhar com absoluta sincronia para garantir que nossas súplicas aos espíritos da máquina sejam recebidas de bom grado.”
“Minhas desculpas, trichine. Cogitação total restaurada. O magos tem certeza de que tal nível de proteção é necessário? A arma está obviamente segura.”
“Não questione o julgamento do magos, logicus“.
De alguma forma, Jorrdeth sobrepujou o trabalho negligente de Dunal através do uso sutil de cânticos avançados de Metalica e do posicionamento cuidadoso de seus mecatentáculos.
“A arma está segura. A pesquisa do magos, contudo, mostrou que devemos proceder com cautela. A real eficácia da arma ainda é desconhecida”. Jorrdeth fez um gesto de desagrado ao proferir a última palavra. “É parte de nosso dever sagrado apresentar ao magos informações completas sobre suas capacidades, junto com a recuperação do artefato. Além disso, esta estação pertence ao Planeta Vermelho. Não podemos presumir a colaboração de seu espírito-máquina. É uma honra inestimável – o sucesso da Expedição de Recuperação depende completamente de meus – dos nossos santos afazeres”.
A plataforma fez seu último desdobramento através do silêncio espacial, completamente coberta por cristais de gelo. No convés do Iambic Khorulam, Dunal pôde sentir o impacto das garras quando se travaram na entrada da estação espacial. Um monitor mostrou-lhe as fileiras de servitors que aguardavam, impactados pela conexão feita pela nave. Seria um valioso tributo se o sistema Metalica garantisse à Expedição de Recuperação M4-Huy-Ω algum de seus preciosos arcana mechanicum, como gesto de boa vontade com aqueles que há muito cruzavam a escuridão em busca de poder. Dunal não conseguia compreender porque o magos enviara ela e Jorrdeth até ali, e ninguém mais. Haviam adeptos muito mais próximos ao magos do que seu superior acreditava ser.
Com poucos impulsos, Dunal ordenou os servitors, e os logoperários e os mecanescravos atravessaram lentamente os segmentos do túnel, liderados por um servo-crânio que resmungava sobre já ter sido um grande lexmecânico. A Tecnomadre sabia que Jorrdeth não sabia o que o magos descobrira, ou o trichine estaria se vangloriando até então. Tudo que sabiam era aquelas coordenadas, milhões de quilômetros além de Metalica, e uma chave hexaclavus que o magos acreditava ser necessária para assegurar a arma. Qualquer informação além disso foi captada pelos dos sacerdotes através dos mnemôn-ecos que reverberavam pela nuvem de dados que se espalhava pelo sistema estelar.
A arma foi utilizada milênios atrás pelos forjadores de Metalica, auxiliando-os na Busca por Conhecimento, no que exterminava mutantes, xenos e máquinas corrompidas pelo immaterium. Sabia-se que salvaram os planetas-forja de Thoromest, Fardell Majoris e Stele Lex, ainda que nenhum deles ainda existisse. Após uma crise desconhecida, a arma fora escondida, pela vontade tirânica de Marte. Até que o magos a redescobrisse, nem mesmo o Fabricator General de Metalica sabia que a arma ali estava, nos limites do sistema. Uma de suas poucas certezas era o nome da arma: Ira Radiante.
Após um longo processamento entre o cogitador do Khorulam Iâmbico e os controles do ancoradouro, Dunal e os servitors de Jorrdeth conseguiram entrar. Os sacerdotes observaram, inquietos através dos sentidos múltiplos de seus servos. O magos insistiu que nenhum deles adentrasse o Fylachor Terminus pessoalmente, de forma que foram obrigados a experienciar a atmosfera sagrada do lugar através dos sentidos limitados de seus servos ciborgues. Lâmpadas antigas tremulavam, e os sensores olfativos registraram ozônio e estranhos hidrocarbonetos. Cortinas de dados moviam-se como relva ao vento, acompanhando os fluxos de energia que atravessavam os servitors como se ali não estivessem; ou jaziam penduradas sobre símbolos entalhados da Opus Machina.
Apesar das preces binárias, não houve resposta direta do mecanismo lógico da estação – apenas alguns sinais automáticos de sistemas periféricos. Os servitors cambalearam, pausaram, e então prosseguiram por um corredor interminável em direção ao interior daquele lugar ermo. Jatos de incenso santificado e o som de orações binárias acompanhavam os passos daquele cortejo; sua posição ecoava por todas as frequências de radium de Metalica.
Os servitors atravessaram câmaras seladas com avisos em vários dialetos da Lingua Technis perdidos por milênios, e passagens escuras nas quais a atmosfera fluia como se estivesse sendo dragada pelo vazio lá fora. Na última curva do corredor, Dunal ordenou a parada seus servos com um gemido orgânico, seguido por um xingamento involuntário de Jorrdeth, em linguagem binária. A passagem acabava subidamente diante de um grande vão.
Haviam luzes, ainda que incapazes de preencher tamanho espaço, fulgurando como pequenas estrelas. Uma mancha cinzenta era vista onde os implantes cranianos dos servitors conseguiam iluminar. Embora não houvesse resposta aos chamados da Khorulam, claramente a presença dos visitantes fora percebida. Algumas das estrelas distantes naquele imenso vão estavam se movendo.
De repente, dezenas de pequenos sóis se acenderam, pegando os Tecnopadres de surpresa. O vazio estava completamente iluminado. Era esférico, e em seu centro, entre impulsores anti-gravíticos, um cubo luminoso, de aproximadamente 10 metros de lado. Dentro da esfera haviam inúmeras armas pesadas, e as pequenas estrelas que perceberam antes eram os sensores óticos das armas montadas. Pelo menos vinte delas estavam apontadas para os servos, os canos inquietos, carregadores funcionais, e células de plasma vibrando em alta frequência. As demais armas permaneceram apontadas para o cubo.
“Atenção, estou detectando intrusos!”, griou Jorrdeth, movendo rapidamente seus manipuladores mecânicos e os mecatentáculos ao longo dos controles da nave.
“Pelo Onimessias! Os bancos de dados, algo penetrou nossas defesas! É horrível, e-eu perdi o controle!”
“O que está acontecendo? Estamos sob ataque?”, perguntou Dunal, identificando os alertas de invasão no fluxo contínuo de dados.
Jorrdeth tornou a concentrar-se na fileira de occulus que mostravam as plataformas de armas apontadas para os servitors, e suas íris prateadas se contraíram em compreensão.
“É a Fylachor Terminus. Despertamos seu espírito da máquina. pela Razão Áurea, jamais testemunhei tanto poder junto a tanta sutileza!”
“Ela vai nos matar!”, disse Dunal, desconectando rapidamente seus mecatentáculos dos sistemas da Khorulam.
“Ela já teria o feito, logicus. Ela está sondando nosso núcleo lógico. Vai encontrar o arquivo de hexaclavus. Não faça nenhuma transmissão. O sinal do magos é suficiente”, disse o trichine, embora seu tom estivesse carregado com diversas variáveis.
Após vários macro-segundos, uma série de indicadores rúnicos se acendeu. O cubo cinzento no centro da esfera moveu-se lentamente até a entrada do túnel, onde os servitors aguardavam, sob a mira das armas automáticas. As demais armas acompanharam os movimentos do cubo com precisão mecânica. Assim que o objeto se aproximou, os Tecnopadres perceberam que uma de suas faces insondáveis possuía uma escotilha, e os sensores implantados no crânio do velho lexmecânico detectaram os sinais cronométricos da tecnologia de estase. O cubo conectou-se ao corredor com um som metálico.
“É seguro? Podemos…”, a voz de Dunal se perdeu.
Os manipuladores de seu parceiro dançaram sobre os controles rúnicos, e as grades de sua máscara emitiram preces de agradecimento. Os servitors responderam e se aproximaram do cubo, enquanto o servo-crânio flutuou para perto, apontando seus sensores para a escotilha. Os sacerdotes observaram, maravilhados, os dispositivos fazendo a varredura do interior do objeto. Dispositivos de estase cercavam as paredes do cubo, mas não alimentados pela tecnologia arcana usual, mas por itens ordinários: braços biônicos desconectados, e cabos de dados. Também havia uma arma carabina radium montada dentro do cofre, mas parecia danificada. Dunal não conseguia entender. A carabina não era uma arma purificadora, capaz de justificar o sucesso de sua expedição. O magos se enganara.
Os sensores do servo-crânio se detiveram nos fundos do cofre, onde havia um grande sarcófago. Seus indicadores mostravam que os sistemas tinham entrado em estado de ressuscitação. Sua superfície de armavidro estava congelada e embaçada por alguma substância, mas era possível identificar as cores pálidas dos trajes nativos, os implantes escuros dos templos-forja, e armadura manchada de graxa. A contagem regressiva do cofre de estase terminara, e um elmo típico da Vanguarda Skitarius se ergueu lentamente, encarando a escotilha.
O Khorulam Iâmbico permaneceu sobre a linha equatorial de Skorifex, onde os maiores templos deste mundo-forja ainda ardiam sob as manifestações psíquicas. O restante da Expedição aguardava do outro lado do sistema, deixando a nave-forja se aproximar sozinha. O Khorulam não era uma belonave, então nenhuma das demais naves preocupou-se em proteger seus flancos. Os astropatas contratados pelo magos detectaram os gritos finais de seus pares em Skorifex; os mensageiros psíquicos da frota gritavam dolorosamente ante as mensagens trazidas pela distorção, pesadelos de sangue e óleo provocados pelos feiticeiros imiscuídos entre a população escrava do planeta.
O Skitarius da Fylachor Terminus ocupou um compartimento especialmente construído no compartimento de carga da Khorulam, à retaguarda, o mais distante possível da ponte de comando. Sensores autonômicos identificaram-no como Skitarius-Luminor 000011, embora a maioria se referisse ao guerreiro por Ira Radiante. Parecia incapaz de se comunicar adequadamente, e todas as tentativas de analisar suas emissões resultavam na perda de algum servitor, cujas baixas ultrapassavam meia centena durante a viagem, além daqueles que exploraram a estação. “O magos não se enganara, afinal”, pensou Dunal, observando o tecido cauterizado em volta de seus implantes, arruinados pela oxidação. A arma purificadora simplesmente era capaz de pensar e locomover-se.
As emissões letais do soldado silencioso jamais foram vistas antes. Atingia tudo à sua volta com uma torrente de partículas zeta emitidas de cada parte do seu corpo. Servitors no mesmo setor da contenção perderam rapidamente seus componentes biológicos, a pele escurecendo e despedaçando em questão de minutos; e não era diferente com componentes metálicos. Ainda não se sabia como os componentes do guerreiro suportavam tanto poder, então Jorrdeth e Dunal ordenaram, desesperado, que o restante da tripulação se concentrasse na travessia turbulenta do immaterium, mantendo a nave funcional mesmo sob a radiação do Skitarius. Por duas vezes, receberam suprimentos de emergência de naves irmãs em transportes descartáveis – nenhuma delas ousaria se aproximar. Embora a dupla se mantivesse à maior distância possível, foram forçados a substituir continuamente suas partes, tanto biológicas quanto mecânicas. O magos prometeu-lhes protocolos de ultra-deionização assim que o Ira Radiante deixasse o transporte, garantindo que as peças sobressalentes seriam-lhe o bastante por ora. Dunal não acreditava nisso.
A logicus observou o soldado cruzar a atmosfera de Skorifex com seu único olho biônico, único implante que Jorrdeth permitiu-lhe desde a última carga de suprimentos – o trichine tomara para si as melhores peças. Seus pensamentos estavam desorganizados; redes neurais substituíram seu tecido cerebral apodrecido, mas seus cálculos estavam mais lentos por algum motivo.
“Vai valer a pena, trichine“, disse ao seu superior. “Skorifex será contaminada por centenas de milhares de anos, mas será purificada, como uma prova da glória de Metalica e do Deus-Máquina”.
Jorrdeth nada respondeu, nem o faria por vários dias. Os efeitos da aura destrutiva do Skitarius não se foram mesmo com sua ausência. Feixes de logoscritos cancerosos multiplicaram-se na noosfera do trichine, expandindo parâmetros e distorcendo sua arquitetura neural. O conhecimento, a maior das riquezas para um Tecnopadre, contaminado por algum tipo de maldição viral, que Dunal era capaz de ver em seus próprios pensamentos. A logicus escondia o medo nos constantes exames feitos pelo magos.
Mais uma vez conteve aquela desnecessária manifestação emocional. Afinal, ela era parte de algo divino e maravilhoso. Toda grande missão tinha seus mártires.