O Despertar Psíquico: A honestidade do traidor
De Dirk Wehner. Original aqui.
Uma frota de naves atravessava lentamente a escuridão sobre as Estrelas Flageladas. Havia uma estranha nebulosa em meio aquele sistema infame, semelhante a nuvens instáveis, ou a uma densa massa de esporos podres. Belonaves imperiais que ousaram atravessá-la, ou satélites perdidos no gélido vazio foram todos reduzidos a carcaças enferrujadas e destroços à deriva, amaldiçoados pela essência do immaterium, ou destruídas pelos ataques dos adoradores do Deus das Pragas. Até o mundo material era contaminado pelo toque do Avô Nurgle, e por isto os seguidores da vil divindade tinham tomado posse daquela região do espaço; ninguém além deles sobreviveria por eras naqueles planetas impuros.
A frota navegava cuidadosamente; jamais fugiriam horrorizados de tamanha maleficência, como fariam os comandantes imperiais. As naves eram tripuladas por servos do Caos – uma combinação de forças renegadas, hereges e piratas menores – unidos em uma causa comum por intermédio de alguém.
A bordo da Desgraçada – a sinistra nave-almirante da frota, ele ponderava sobre seu prêmio. Em um laboratório mal iluminado, mantido em um campo de estase potencializado por um ritual profano, a caixa flutuava sobre o chão, enquanto ele caminhava lentamente à sua volta, estudando. Uma casaca pesada, costurada com pele humana cobria-lhe a armadura autopropelida. Uma massa contorcida de mecanobraços projetava-se em suas costas, equipada com seringas, serras e outros instrumentos de tortura, por ele consideradas ferramentas de estudo.
Fabius Bile parou e sorriu.
A Arca Cornucontagiosa.
Minha, finalmente.
Aproximou-se do campo de estase para examinar o objeto. Não parecia grande coisa, quase medíocre. Um simples baú, construído de madeira amaldiçoada e enegrecida pela podridão, as dobradiças cobertas de azinhavre; a crosta, entretanto, era incapaz de ocultar completamente as marcas de Nurgle, gravadas por toda a superfície do objeto. Mas o poder que ele continha… Poderia fazer tantas coisas se libertasse as forças sobrenaturais ali contidas…
O campo de estase oscilou, e uma bolha de pus se formou na superfície da caixa. O sorriso de Fabius se alargou. Testemunhara algo tecnicamente impossível; a Arca Cornucontagiosa resistia aos seus grilhões, era poderosa demais para ser contida por uma tecnologia tão antiga e delicada. Poderosa demais até para os feiticeiros que empregara a fim de amplificar a potência do campo de força.
A lembrança de dois dos seus servos em particular fê-lo sorrir ainda mais; tornaram-se cobaias interessantíssimas assim que realizaram os rituais. Sob efeito da relíquia, sua carne crescera em ritmo descontrolado, transformando-os em pesadas bolhas de carne lacerada, completamente além dos padrões humanos.
Em sua incessante busca pelos segredos da vida e da morte, a jornada de Fabius Bile se deparara com as forças de Nurgle por diversas vezes, mas ele jamais testemunhou tamanho poder. Assim que fosse liberada, a Arca Cornucontagiosa provocaria mutações catastróficas e crescimento incontrolado em um nível tão alarmante que poderia corromper planetas inteiros em poucos dias.
Ainda sorrindo, Fabius avançou em direção ao campo de estase, esfregando inconscientemente as mãos. Ele mal podia esperar para desvendar todos os segredos do artefato, submetê-lo à sua vontade e utilizar todo aquele poder…
Se não fossem todos aqueles… contratempos…
Tão logo o pensamento ocorreu, apagou-lhe o sorriso do rosto.
A Arca Cornucontagiosa tecnicamente não pertencia-lhe, e a Death Guard não estava nem um pouco feliz quanto aos meios empregados para tirar-lhes o artefato. Aqueles ingênuos consideravam-no sagrado, um presente do Pai das Chuvas; jamais desistiram de reavê-lo.
Desde que Bile e seu bando roubaram a legião, a Death Guard os perseguia incansavelmente, capturando cada uma das naves dos renegados. A frota de Fabius, seriamente reduzida, não avistava as naves pútridas da Death Guard há alguns dias, mas ele sabia que eles apareceriam mais cedo ou mais tarde.
Silenciosamente, a bolha sobre a arca se rompeu, espalhando pus por todo o campo de estase. As gotas fétidas permaneceram suspensas no ar, como pequenas e nojentas estrelas.
“Interessante”, murmurou Fabius, se aproximando.
De repente, um ruidoso alarme se ativara e todo o laboratório foi tomado por luzes vermelhas. Fabius sorriu, satisfeito, e ergueu-se. Precisaria lidar com esse contratempo de uma vez por todas, ou jamais teria tempo para trabalhar. Em passos céleres que agitavam-lhe a sobrecasaca, dirigiu-se à ponte da Desgraçada.
Enquanto isso, a Arca formava lentamente outra bolha em sua superfície entalhada.
“Quero falar com o Bile agora! Contatem a Desgraçada novamente!”, gritou Grarken Furith.
A ponte enferrujada da Águia Esfoladora estava tomada pelo ruído dos alarmes, do fluxo de dados em linguagem binária dos servitors, e do trabalho intenso da tripulação de hereges. Sentado na cadeira de comando, Grarken observava a confusão. A grande armadura negra rangeu quando se ergueu.
“E ponham ordem nessa loucura, ou eu juro pelos Deuses Sombrios que v-“
“Queria falar comigo, Lorde Furith?”, soou a voz de Fabius Bile pelo vox. Um pouco distorcida, mas Graken reconheceu o tom calmo e arrogante do Primogenitor, o que enfureceu ainda mais o capitão.
“Você sabe que a Death Guard está em nossos calcanhares?”, gritou. “Eles nos superam em número! Estamos condenados e é tudo sua culpa!”
“Acalme-se, Lorde Furith”, respondeu Bile suavemente, provocando o efeito inverso. “Te prometi o comando de uma poderosa frota se me servisse bem, certo? E agora você comanda dez naves. Também prometi que teríamos a relíquia, e aqui estamos”.
“Não ligo para a relíquia, Bile!”, gritou Grarken, empurrando um servo que tentava chamar-lhe a atenção. “Só quero saber como você vai nos tirar dessa! Não desertei de meu Capítulo para morrer pelos seus caprichos. Te juto, se morrermos aqui, eu pessoalmente te trucidarei!”
Bile deu uma pausa. “Confie em mim mais uma vez. Prometo que sairemos sãos e salvos”.
Grarken assentiu com a cabeça, empurrando novamente o servo que insistia em falar-lhe. “Era o que eu queria ouv… quê, o que você disse?”
“Meu senhor”, balbuciou o servo, caindo desajeitadamente aos pés de Grarken. “A Desgraçada ligou os motores e ruma para o Ponto Mandeville”.
“A Death Guard alcançou nossa retaguarda!”, gritou outro servo, apavorado. “Eles já abateram a Fogos do Medo! Estão abordando-a agora mesmo!”
Grarken Furith sentiu a ira tomar conta de si, alimentando seu desejo de agarrar o pescoço de Fabius Bile e estrangular aquele traidor malicioso.
“Ignore a Death Guard! Todas as naves, ativem os motores de plasma! Estamos indo atrás da Desgraçada! Fabius Bile será expurgado da existência, mesmo que seja a última coisa que farei!”
O recinto estremeceu conforme suas ordens eram cumpridas, e toda a energia da Esfoladora fora conduzida para os motores de plasma. Um sorriso sombrio surgiu no rosto do capitão renegado. Ele pegaria Bile, e quando o fizesse…
Um impacto repentino quase o fizera perder o equilíbrio, e novos alertas começaram a soar. Por um momento, a ponte foi tomada pela escuridão, iluminada por nada além das faíscas que saltaram dos consoles sobrecarregados, antes que as luzes de emergência se ativassem.
“Senhor, houve uma pane catastrófica em nossos motores!”, anunciou um servo. “O mesmo aconteceu com a Mutilatus, a Punho Sombrio e a Senhor do Medo – todas reportaram falhas nos motores! Toda a frota está à deriva no vazio, meu senhor!”
Em meio ao pandemônio, o vox voltou a funcionar e a voz de Bile soou novamente. Suas palavras estavam mais distorcidas conforme a Desgraçada se afastava, mas o tom de desprezo era inconfundível.
“Pra falar a verdade, Lorde Furith, jamais confiei em você. Nem você deveria ter confiado em mim. Mande minhas lembranças para a Death Guard. Adeus”.
O rosto de Grarken empalideceu. Um grito cresceu em sua garganta, um rugido de ódio, que ecoou conforme a nave estremecia sob o fogo da Death Guard. Em seus últimos momentos, antes que a nave explodisse, Grarken gritou um único nome.
“Bile”, rosnou Typhus. “Não me importo com essa frota de insetos, é ele que eu quero”.
Fluggogh Mogh deu um cuidadoso passo para trás antes de responder, agitando o enxame de moscas que se abrigava na armadura do Conferente. Naquele momento, Typhus parecia mais tranquilo, sentado na cadeira de comando da Terminus Est, mas ele não queria alimentar sua irritação.
“Como eu disse”, repetiu Fluggogh, “a frota do Primogenitor foi completamente destruída, mas ele escapou em sua nave”. Deu mais um passo para trás. “E temo que tenha levado a relíquia, mestre”.
Typhus moveu-se em seu acento, voltando sua armadura Terminator na direção do Conferente, como se ele fosse o responsável por tudo aquilo.
“Isso é… lamentável”, rosnou.
“Mas também trago boas novas”, Fluggogh continuou rapidamente. “Nossas criaturas… os Daemons captaram o rastro psíquico da Arca Cornucontagiosa. Não sabemos seus planos, mas sabemos onde Bile está indo”.
“Diga-me”.
“A Desgraçada está a caminho do Portal de Cadia, mestre”.
Typhus sorriu. “Então nos encontraremos lá, e teremos uma conversinha sobre o significado de propriedade”.
A Terminus Est’s ativou os motores, e a gigantesca belonave avançou lentamente. À sua retaguarda, uma Frota Pestilenta composta por dezenas de naves contaminadas, deixando um rastro de vapores fétidos que se dissipavam aos poucos pelo vazio do espaço.