O Despertar Psíquico: Exaustão
Original aqui.
“Tente novamente”, ordenou Phraig, sentado no banco do passageiro do Ridgerunner. Laria devolveu um olhar fulminante ao irritante minerador. Não demonstrou ter intenção de soltar os controles do veículo; o jipe deu um solavanco, jogando-os para trás nos assentos e obrigando-a a voltar sua atenção para o cenário além do para-brisa.
“Se você quer perder seu tempo, tente você”, respondeu ela. “Não sei se você percebeu mas estou ocupada”. Pelo que vira, Phraig não estava fazendo nada. Ele apenas se ajeitou em sua cadeira, segurando a alça de segurança com uma mão, e coçando a tatuagem na perna com a outra. Tudo que ele fazia a irritava, da sua inquietude ao odor nauseante de suor que Laria costumava ignorar. Hoje não era o caso.
Lembre-se que não é só o Phraig, pensou, reprimindo uma pontada de nervosismo. Tudo está me irritando nos últimos dias, e outros também estão assim, que o Imperador os proteja.
“Pra que se importar?”, retrucou Phraig. Diante da perspectiva de fazer algum esforço, perdeu o interesse no vox. “A base não respondeu às últimas chamadas. Por que insistir nisso?”
Laria apenas resmungou. Sua cabeça doía. Observar o exterior pelas vigias empoeiradas do veículo, e concentrar-se em não derrubá-los no Desfiladeiro Storfort não estava ajudando. O Ridgerunner sacudia através da trilha pedregosa, e a cada solavanco pareceia que alguém golpeava-lhe entre os olhos com uma picareta. Sua pele pinicava como se algo rastejasse por baixo dela, e há dias que Laria sentia altos e baixos emocionais, da paranoia à completa letargia.
Só aquilo já deixava-na exausta.
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Era estranho que o Acampamento Rachnus estivesse em silêncio. Na verdade, Laria compartilhava com Phraig a inquietude quanto a isto. Thrule Terius era um mundo hostil, cheio de armadilhas naturais e tempestades de areia cujos ventos cortantes podiam reduzir um veículo a sucata em questão de minutos. Era comum que os acampamentos de mineração entrassem em contato por vox com as equipes de prospecção a cada hora; deixar de contatá-los, mesmo que por algumas horas poderia ser fatal, sem contar o risco de receber multas do Administratum por atraso nos relatórios.
Laria se assustou quando o vox fez um ruído súbito, então percebeu que era Bosk chamando de seu veículo, algumas dezenas de metros atrás dela.
“Ainda sem resposta? Câmbio”.
“Não, eles estão tagarelas feito um ratling bêbado, Bosk. É que esquecemos de te colocar na conversa”, respondeu Laria. Não conseguia disfarçar o tom passivo-agressivo, nem cumprir os procedimentos de vox.
Essa não é você, recriminou a si mesma. Só há lugar pra um malcriado neste veículo, e Phraig já assumiu esse cargo.
“Desculpa, Bosk”, apressou-se, odiando o quão estúpida parecera. “Não me livro dessa dor de cabeça e estou preocupada com esse silêncio do acampamento. Câmbio”.
“O Imperador não precisa perdoar o que não ouviu, Lar”, respondeu Bosk, e mesmo seu bom humor habitual a irritou. “E concordo. Há algo de errado. Câmbio”.
Ela poderia ter tranquilizado o velho garimpeiro, mas não conseguia se manter otimista. Desligou o vox e mergulhou em profundo silêncio enquanto atravessava a poeira e a luz ofuscante do sol de Thrule. A base estava há poucos quilômetros dali, protegida dos ventos entre as paredes do Fim da Ravina.
Saberemos o que se passa logo, logo, pensou, ignorando a vozinha assustada nos confins de sua mente, sussurrando sobre xenos ou ataques de macrotalpa. Ela descobriria o que estava acontecendo, e finalmente se livraria daquele mau pressentimento que pesava-lhe no peito há semanas.
Conseguiu se acalmar um pouco ao avistar o acampamento, enquanto se aproximava pela estrada acidentada no meio do Fim da Ravina.
“Sentinelas nas torres, portões intactos e nenhum sinal de tempestades de areia, avalanches ou o que quer que seja”, disse.
“Chamar esses caras de sentinelas? Você está sendo generosa, Lar”, comentou Phraig, jogando um balde de água fria em seu humor instável. Não podia refutá-lo, no entando. Conforme se aproximavam, ficava claro que os guardas eram negligentes em seus postos, observando-os à meia distância.
“Ele está dormindo mesmo?”, perguntou, diante da visão de um miliciano reclinado sobre a varanda de sua torre na frente de pelo menos dois colegas. O Capataz Supter prezava pela disciplina; observar aquela conduta nos sentinelas deixou Laria ainda mais preocupada.
“Errado não tá”, resmungou Phraig. “Eu poderia dormir como um defunto”.
Por algum motivo, aquela frase deu-lhe calafrios.
“Também não há poeira”, disse Laria, apontando o céu limpo com o queixo. “Por que parariam de escavar?”
Tudo que Phraig fez foi dar de ombros.
Sempre as melhores respostas, pensou, preocupada.
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Laria conduziu o veículo por mais uma passagem sinuosa da trilha, e mergulhou nas sombras projetadas pelas muralhas modulares do acampamento. A barreira se estendia por toda a ravina, separando a última porção protegida do desfiladeiro e a mina escavada na parede à sua retaguarda.
Rachnus tinha um único portão, uma peça massiva de metal gravado com a aquila imperial, flanqueada pelas torres de vigia; e Laria deu-se conta do quão lento era o processo de abri-lo. As armas automáticas se viraram em direção tanto do seu veículo quanto do Ridgerunner de Bosk e Kardhi. Por um momento ocorreu-lhe que os sentinelas não tinham ativado as runas de segurança, e que estavam parados diante de servitors armados prestes a abrir fogo por não saber se os alvos eram aliados.
Pôde finalmente respirar quando os alarmes soaram e o portão moveu-se lentamente sobre os trilhos.
A mineradora guiou o veículo entre as barracas pré-fabricadas, passando pelos generatorum barulhentos e as construções erguidas sob altas colunas do lugar. O mal pressentimento se agravou assim que avistou diversos mineradores parados por ali, sozinhos ou em pequenos grupos, encarando como se tivessem esquecido seus afazeres. Alguns estavam sentados nos degraus metálicos dos abrigos, e outros simplesmente deitados sob o sol causticante.
“Bela maneira de ganhar uma queimadura”, resmungou Phraig ao acompanhar o olhar da companheira. Em seguida, gritou de surpresa quando Laria agarrou os controles e freiou bruscamente.
A poeira subiu. O cascalho ressou. O ridgerunner sacudiu sobre as suspensões e então tremeu com a morte do motor.
“Pelas barbas do prof-“, disparou Phraig, parando ao olhar o rosto de Laria. O coração de sua colega explodia no peito, enquanto encarava o monitor de retrovisão, esperando a poeira baixar. Voltou a respirar assim que avistou uma figura trôpega pelo para-brisa, e o alívio rapidamente se tornou raiva, quando o homem simplesmente continuou seu caminho, como se nada tivesse acontecido.
“Aquele retardado simplesmente entrou na minha frente!”, gritou, socando a runa que abria o alçapão e erguendo-se até o teto do veículo. Lá em cima, contudo, descobriu que sua irritação já estava misturada com a letargia. O homem continuou seu caminho até um dos abrigos e deixou Laria ainda mais inquieta.
O que está acontecendo aqui?, pensou, assustada com o quão rápido sua raiva se dissipara e com os olhares vazios dos trabalhadores. Bosk dera as caras lá atrás; ele e a parceira estavam descendo do ridgerunner. Fez uma careta quando o velho prospector ajudou Kardhi a sair do veículo. A jovem aprendiz normalmente era a mais enérgica da equipe.
“Tem algo errado”, disse Bosk, assim que os quatro se reuniram ao lado do primeiro veículo. “Não me sinto bem, Kardhi claramente não está bem, e metade desses vermes também não estão. O que está acontecendo, Lar?”
A irritação de Laria surgiu novamente, ainda que o sentimento fosse bem mais débil. Notou que as pontas dos dedos estavam formigando, e sentia frio a pesar do calor escaldante de um sol a pino.
“E como eu saberia, Bosk?”, perguntou, e assustou-se com o tom quase suplicante de sua voz.
“Supter deve saber o que está acontecendo”, disse Phraig, estremecendo e se recompondo em seguida, ainda surpreso.
Encontraram o capataz do acampamento em seu alojamento suspenso. Laria quase não conseguiu escalar a escada de cordas, e Kardhi teve de esperar lá em baixo.
“Eu vou ficar bem”, garantiu Kardhi, soando distraída. “Eu só… preciso…” e silenciou.
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Laria empurrou a porta do alojamento ao notar que estava entreaberta, e encontrou o capataz caído junto ao cogitator. O cheiro do ambiente fê-la tossir; a comida apodrecera nas bandejas largadas entre os relatórios espalhados e as placas de dados queimadas. Canecas de recaf frio estavam por todo o lugar, cobertas de poeira e com os primeiros indícios de algo esverdeado.
A fonte do mau cheiro, entretanto, era o próprio Supter. Dava para ver que o homem não trocava as roupas há vários dias; e claramente não se levantara da cadeira há um bom tempo. Apesar da comida embolorada à sua volta, o capataz estava esquelético. Laria jamais vira suas roupas tão folgadas.
Também estava chocada ao perceber que uma das mãos do homem estava enfaixada, e as ataduras precisavam urgentemente serem trocadas. Fluidos escorriam por elas, formando uma poça seca que grudara a mão do capataz na mesa.
Phraig apareceu atrás dela e se assustou quando atingido pelo cheiro da podridão.
“Capataz? Você… está bem?”, perguntou em um tom não muito preocupado. Embora pudesse perceber o absurdo de toda a cena, Laria também se esforçava para se importar.
Por que viemos aqui, afinal?, pensou, distraída.
Os olhos avermelhados de Supter viraram na direção deles.
‘Equipe Quatro. Voltaram”, balbuciou. A mão saudável tateou em busca da pena, como se quisesse registrar o retorno dos dois, mas mal teve forças para resvalar no instrumento com a ponta dos dedos.
Você quer respostas, pergunte sobre o silêncio no rádio, Laria disse a si mesma, embora não considerasse isso tão importante quanto antes.
“O que houve com sua mão?”, ouviu-se perguntando ao invés. Supter olhou as bandagens sujas, um tanto surpreso.
“Há três dias”, respondeu. “Três dias? Stephyn teve… um surto… gritando coisas sobre estar sendo observado, estar sendo oprimido… algo sobre a queda do véu… pegou uma das ferramentas e… destruiu o vox-mestre… Eu… tentei detê-lo e…”, Supter se perdeu, e seus olhos perderam o foco.
Isso responde uma das perguntas, pensou Laria. Sem vox, não há contato por vox. Questionar-se por que alguém não consertara o aparelho, ou feito um reparo improvisado estava além de suas capacidades.
“Capataz, o que está havendo por aqui?”, perguntou Bork, e sua voz alta e segura fez Laria estremecer. Sentiu-se como se alguém tivesse jogado-lhe água fria no rosto, e por um momento voltou a perceber as coisas absurdas que ocorriam. Ainda sentia medo, mas a emoção estava tão enfraquecida quanto Supter, e logo desapareceria.
‘Algo… talvez o… abismo?”, perguntou Supter.
Isso poderia ser alguma maldição do Grande Abismo?, pensou Laria, endireitando-se quando sua cabeça tombou e suas pernas ficaram dormentes. O que estava drenando-lhe as forças e enevoando-lhe os pensamentos? Tinha um horrível pressentimento, mas naquele momento era incapaz de demonstrar qualquer sentimento.
“O Abismo está aí… há tempos… O Imperador nos manteve a salvo até… agora…”, disse Bosk. Phraig emitiu um grunhido de concordância, ainda que soasse vago e distraído.
“E se-“, o que quer que Bosk estava prestes a sugerir foi interrompido por uma explosão vinda de fora. A cabana oscilara sobre as colunas metálicas. As comidas velhas e papéis amassados caíram da mesa de Supter. Uma das canecas se espatifara no chão.
“Mas que p*rra é essa?”, gritou Bosk, de olhos esbugalhados. O homem agarrou o pingente da aquila e encarou cada um dos presentes. Laria não sabia o que dizer, então cambaleou sobre suas pernas dormentes e abriu a porta. Apoiou-se na varanda próxima as escadas, tentando entender o que estava vendo.
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As chamas ardiam e crepitavam, e a fumaça se espalhava. Um dos generatora explodira, e pedaços de metal incandescente e corpos carbonizados se espalhavam em volta. Várias cabanas também estavam em chamas. Laria estava tão entorpecida que não conseguia ficar horrorizada diante das pessoas caídas, incapazes de escapar das chamas.
“Por que elas… não fogem?”, suspirou. Algo grande passou acima dela, um borrão escuro, tão rápido que ela não conseguia identificar. O ar gritou assim que a coisa passou, como pregos arranhando seus nervos afetados. Laria moveu a cabeça a fim de acompanhar o borrão, mas antes de conseguir fazê-lo, veio uma nova explosão, bem abaixo dela.
Kardhi, pensou quando as chamas se espalharam pelo chão e a escada caiu. Deixamos a Kardhi lá embaixo.
Então ela finalmente caiu, sentindo um frio na barriga quando as colunas que sustentavam a cabana se curvaram e partiram. Bosk gritou aterrorizado, mas sua voz mal era ouvida por conta do rugido da explosão e o grunhido do metal colapsando.
Algo pesado atingiu Laria por trás, e ela caiu sobre a amurada. Estava muito fraca e letárgica para se segurar ou mesmo salvar-se; o chão se aproximou, inexorável, e ela o atingiu com o agonizante ruído de ossos quebrados.
Metal se partindo. Chamas tremulando. Estilhaços atraveçando o espaço, e o chão convulsionando sob seu corpo alquebrado. E tudo que Laria conseguia pensar era Eu não sinto nada… Por que não sinto nada?
Ouvira de mineradores que quebraram o pescoço ou a coluna, e perdiam a sensibilidade do corpo. Seria este o caso?
Mas isso não quebra suas emoções, não é? Imperador, porque não sinto nada?
Poeira e fumaça envolviam a mineradora caída no chão. Reuniu forças para mover o olhar e avisou Phraig caído perto dela, a cabeça posicionada em um ângulo horrível. Os olhos do parceiro estavam vítreos. Sangue escorria-lhe das narinas, e jorrava entre os dentes, no local onde mordera a própria língua.
Não vai mais reclamar de nada, pensou, um pouco mais lúcida. Não conseguia perceber mais nada quando uma forma grande e escura debruçou-se sobre ela. O sol de Thrule refletia-se no metal queimado e naqueles olhos cruéis, mas Laria era incapaz de entender o que via. Tampouco era capaz de se importar quando a figura abaixou-se e agarrou-lhe pelos cabelos, nem quando se virou e começou a arrastá-la pela poeira até a entrada da mina.
Não doía.
Não importava.
Laria só queria dormir.