O Despertar Psíquico: O cais sob a tormenta
Original aqui.
Amontoados nos compartimentos apertados do Repressor, Sirius e seu esquadrão de Adeptus Arbites checavam o equipamento enquanto o veículo marchava pelas ruas da cidade.
O Arbitrator se segurava em um dos suportes, e gritava por conta do barulho do motor: “Pelo que fomos informados, eles pousaram em um dos setores industriais. Unidades da defesa planetária local estão a caminho para estabelecer um perímetro, mas vocês sabem como a coisa funciona”.
“Ninguém ao menos cogitou abater essa coisa antes que ela aterrissasse?”, perguntou Yhern, um dos milicianos, enquanto ajustava a armadura de carapaça.
Sirius sorriu cinicamente. “Nosso querido governador planetário estava muito ocupado apertando mãos para tomar uma decisão efetiva antes que já fosse tarde. Então aqui estamos.”
“Maravilha”, resmungou um deles.
‘Sim”, prosseguiu Sirius. “Ponham um sorriso no rosto, porque precisamos manter isso sob controle”.
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Assim que atravessaram a escotilha de embarque, o esquadrão observou o cenário. O transporte dos refugiados caíra sobre algumas ruínas industriais, bem na região onde a selva de Mesmoch tinha começado a reconquistar. A carga humana já começava a se dispersar, afastando-se rapidamente da espaçonave.
Um segundo Repressor parou bruscamente ao lado do primeiro esquadrão de Arbites, e o esquadrão liderado por Lere desembarcou em poucos segundos.
O comandante da equipe aproximou-se de Sirius em movimentos firmes e ágeis. “É bastante gente. Temos de resolver isso antes que a coisa saia do controle”.
Sirius virou-se e observou as duas equipes, já um tanto apreensivas. “Por que mandar um número de tropas adequado para missão quando podemos mandar só os Arbites, né?”
“Só o Imperador sabe”, respondeu o Arbitrator, dando um tapa no ombro do companheiro. “Parece que as outras equipes encontraram vestígios de cultos a bordo dessas coisas. Fique atento”.
‘Bom saber”, respondeu Sirius, cada vez mais inquieto, à medida que mais e mais pessoas saíam da espaçonave. Muitos estavam sendo carregados pelos companheiros, e traziam os olhos vidrados, em estado de choque. No entanto, Sirius reparou que nenhum deles trazia sinais de combate.
Inspirou profundamente o ar cálido da selva. “Pelo Trono, mais desses desmortos. O que você acha que aconteceu com eles?”
“Quem sabe?”, respondeu Lere. “Essas naves de refugiados estão cheias deles. Vamos, temos um trabalho a fazer”.
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“Arma!”, veio o alerta, imediatamente seguido pelo som trovejante de uma escopeta.
O esquadrão de Sirius reagiu instantaneamente, erguendo as armas e apontando-as para a multidão. O Arbitratror sacou a arma presa aos ombros, perscrutando os olhares assustados da população à frente, procurando por indícios de degeneração moral ou heresia nascente.
Não demorou para que os gritos e lamentos começassem. Pelo canto dos olhos pôde ver o homem que fora baleado, e uma velha pistola caída ao lado. A multidão se apressara, acotovelando-se em volta do cadáver, tomados pela raiva e pela indignação. Crianças choravam, homens e mulheres gritavam, numa sólida mistura de medo e desespero, liberada após meses de estresse e frustração enquanto embarcados. As vozes se ergueram em preces, ávidas por qualquer alento.
Sirius continuou a observar a multidão até que finalmente sua diligência rendeu-lhe frutos. Em meio ao pânico dos refugiados, uma expressão patente de desafio e revolta; os músculos do pescoço do homem estavam tensos e pulsantes, e seus olhos negros e joviais estavam fixados no cadáver. De repente, projéteis improvisados começaram a explodir em meio à formação dos Adeptus Arbites, conforme a turba atirava-lhes quaisquer objetos à mão.
Sirius sacudiu as pedras e escombros espatifados contra a armadura, e avançou pelo vazio que separava os dois grupos, apontando a arma para um insurgente próximo. “Ei, você!”
Os olhos do sujeito reagiram imediatamente, dardejando selvagemente o oficial.
“Pro chão! Em nome do Imperador!”, ordenou o Arbitrator.
Um de seus subordinados avançou ao seu lado, empunhando o escudo a fim de proteger os dois, e Sirius sentiu um toque no ombro quando outro soldado avançou pelo outro flanco. A cena parecia em câmera lenta; os milicianos encarando um único alvo no meio da multidão.
“Não faça isso”, sussurrou, sabendo muito bem o que aconteceria a seguir.
Como previsto, o jovem abriu o longo manto, revelando uma pistola automática pendurada ao corpo. Sirius não permitiu que o alvo a alcançasse; puxou o gatilho, sentindo nas mãos o poderoso coice da arma. O segundo disparo explodiu a pelvis do sujeito, lançando-o ao chão, ensanguentado. O oficial forçou-se a sair daquele transe, tentando reaver o controle da situação.
Uma grande pedra atingiu o elmo de seu companheiro, atordoando-o e enfraquecendo sua posição defensiva. Sirius mal teve tempo de segurar-lhe pela armadura para que não caísse, e pôs o companheiro em sua posição anterior. Olhou em volta novamente, finalmente compreendendo a cena dantesca que se apresentava, na qual seus esquadrões pouco a pouco perdiam terreno para as salva de projéteis jogados em sua direção.
“Está saindo de controle!”, gritou Yhern, à retaguarda.
Então uma série de zumbidos soaram próximos à sua cabeça, tão próximos que deram-lhe calafrios. Projéteis de automáticas!
“De onde estão vindo?”, gritou, desesperado.
“Eu os vejo…”, respondeu Yhern.
Outra série de disparos veio, acompanhada pelos zumbidos, mas de forma menos furiosa. Um impacto atingiu Sirius pelas costas; que se virou para olhar. De joelhos, Yhern tentava se reerguer desesperadamente, apoiado em um dos braços. O outro estava encolhido, como se tentasse conter os fluidos escuros que escorriam pelas placas da placa peitoral. O Arbitrator tentou dizer algo, mas tudo que saíra de sua boca foram ruídos indiscerníveis.
Sirius posicionou a alça da escopeta, prendendo-a junto ao corpo, e agarrara o escudeiro pelos ombros, gritando a plenos pulmões: “Ajudem!”
Entorpecido, o homem observou o companheiro caído – estava quase certo de a pedrada causara-lhe uma concussão – e dois soldados se apressaram em remover Yhern, apressando em carregá-lo até seu transporte, parado lá atrás.
“Precisamos recuar e reagrupar!”, ordenou aos demais, enquanto corriam de volta para o Repressor.
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Os médicos do esquadrão foram céleres em socorrer Yhern, removendo-lhe a armadura a fim de remover o projétil, enquanto o comboio atravessava apressado uma série de becos. Até ali, a flora voraz do planeta lutava para retomar o território outrora dominado pelo distrito industrial, e ervas daninhas espalhavam seus tentáculos distorcidos às margens de toda a estrada.
“Recebemos avisos de novos pousos não autorizados”, gritou o condutor do veículo em direção ao grupo. “Zonas de conflito estão surgindo dos conglomerados habitacionais até a Praça dos Penitentes”.
“Pelo Imperador, como isso é possível”, questionou-se alguém. O condutor fez uma rápida manobra para evitar os escombros de uma estátua de São Chet, então continuou. “Parece que nossos procedimentos de quarentena não estão tão rigorosos como achávamos…”
O soldado se virou para Sirius. “O senhor acha que tem a ver com os relatos de bandos de mutantes que ouvimos?”
“E como eu saberia?”, respondeu o Arbitrator. “Contate a delegacia, precisamos saber o que fazer com-“
Sirius deu-se conta que fora jogado para uma das extremidades do veículo; sentiu o peso dos seus companheiros pressionando-o contra a parede do blindado, e o zumbido remanescente de uam explosão.
Os homens tentavam se reerguer, entreolhando-se, notadamente confusos. Empurrando um soldado que imobilizava-o, Sirius aliviou-se ao perceber que o veículo ao menos continuava de pé, e espiou através das vigias. O outro Repressor não tivera a mesma sorte; pouco restava além de uma carcaça envolta pelas chamas.
Sem tempo para pensar no que se sucedera consigo e seus subordinados, o oficial apressou-se até o compartimento do condutor, gritando-lhe a plenos pulmões: “Tire-nos daqui!”
“Não dá!”, respondeu Denlen, o motorista, mexendo nos controles. “A lagarta direita explodiu, não vai se mover.”
Sirius emitiu um sonoro palavrão, e ouviu armas sendo disparadas no exterior do veículo. Observando pela escotilha dianteira, logo identificou o prédio de onde vinham os tiros.
“Eu não queria dizer o óbvio, senhor”, disse Denlen, apontando para o blindado destruído. “Mas não quero estar aqui dentro quando eles recarregarem o que quer que tenha feito aquilo”.
Sirius se virou para os demais, um tanto alarmado. “Todos para fora, agora!”
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“Se vamos consertar a lagarta, temos de nos livrar deles antes”, refletiu Sirius.
“E quanto às pessoas lá atrás? Se o que ouvimos sobre mutações entre os refugiados, não podemos deixá-los simplesmente ir”, disse Jovah.
“E o que faremos a respeito? Somos poucos”, retrucou o oficial.
“Nem sabemos porque essas pessoas estão vindo para cá”, disse Yhern, com dificuldade, tossindo ruidosamente em seguida.
“Ouvi coisas pelo vox, fragmentos de mensagens enviadas pela tripulação das naves”, disse Denlen, hesitante tão logo o grupo se virou para ouví-lo. “Algo sobre uma grande sombra, um grande vazio”. Apontou para o céu. “Lá.”
“Acha que o que eles falam tem algum sentido?”, zombou Jovah. “Você viu o estado no qual chegaram, eles nem sabem onde estão. São hereges, provavelmente”.
“Não é tão simples”, disse Denlen, em um tom sombrio. “As outras equipes relataram ter visto coisas estranhas entre os fugitivos”.
Sirius observou os companheiros em silêncio. Não permitiria que cedessem à pressão. “Acalmem-se. Rezem por eles, se quiserem. Vamos assegurar o perímetro, consertar o Repressor e descobrir o que diabos está acontecendo”.
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Os integrantes da equipe ainda ilesos adentraram o prédio apressados, subindo a escadaria em direção aos andares de onde os tiros vieram. Encontraram alguma resistência no caminho, alguns poucos fugitivos que conseguiram burlar as checagens de segurança antes de desaparecer entre a multidão.
Chegando ao topo do edifício, Denlen, cada vez mais nervoso, começou a resmungar em um tom inaudível, observando desconfiado o restante do esquadrão.
“Vocês não estão ouvindo?”, disse, finalmente.
“Façam silêncio”, sussurou rispidamente o comandante.
“Ouço a voz dela”, prosseguiu Denlen, olhando, inquieto, em todas as direções. “Vocês deveriam estar ouvindo também”.
Sirius estava bem irritado com o miliciano. Os apuros pelos quais passaram devem ter causado sérios danos em seus nervos, e os devaneios de Denlen estavam alimentando um medo irracional no Arbitrator. E se os refugiados trouxeram algum tipo de bruxaria para Mesmoch?
“Juro pelo Trono, Denlen, que se você não calar a boca, eu calarei”, disse, encarando o homem.
“Ela disse que não deveríamos estar aqui”, devaneou Denlen.
Sirius meneou a cabeça com desprezo, e se virou para os demais. “Vamos”.
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O grupo atravessou o corredor arruinado, em movimentos precisos e sincronizados entre si. Os cômodos que revelavam-se ao longo da passagem eram checados e assegurados conforme avançavam em direção a uma área mais ampla.
Uma jovem mulher estava sentada no meio do salão, abraçando os joelhos. Sirius a encarou enquanto os demais checavam as extremidades do local. Até onde percebera, a frágil criatura coberta de trapose estava desarmada; não vendo ameaça, permitiu-se abaixar a arma.
Um dos milicianos pendurou a escopeta e a abordou, estendendo-lhe a mão. “Vai ficar tudo bem, confie em mim”.
A garota olhou para cima lentamente, fazendo contato visual com o soldado antes de observar o restante do grupo. Levantou-se timidamente, e o militar deu um passo adiante.
“Onde está o lança-mísseis?”, gaguejou Denlen.
Sirius lançou-lhe um olhar fulminante. Sua paciência com o motorista já estava no limite. “O que?”.
“O lança-mísseis”. Os olhos do homem estavam estranhamente inquietos. “O que explodiu o esquadrão do Lere. Não encontramos em parte alguma”. A arma de Denlen continuava apontada para a garota, mas suas mãos claramente tremiam. “Ela foi tudo que encontramos”.
“Recomponha-se, homem”, admoestou Sirius, que percebeu algo diferente tão logo voltou a olhar para a jovem. Seus instintos gritavam-lhe sobre feitiçaria.
Ela não parecia menor e mais frágil antes? Ela observava-o calmamente enquanto afastava o cabelo do rosto. O que há por trás desse olhar? O Arbitrator passara anos aprendendo a ler pessoas. A experiência ensinou-lhe que ouvir seus instintos era a melhor maneira de se manter vivo, mas naquele momento as coisas não estavam tão claras.
Esse olhar, pensou, tentando desviar dele, que parecia penetrá-lo, e tornar sua escopeta cada vez mais pesada.
“Ela disse para não se aproximar”, disse Denlen, um tanto distante.
Sirius percebeu, um tanto surpreso, que a garota não piscava. Por que não pisca? O homem diante dela aproximou-se para tocá-la, e um sorriso surgiu naquele rosto frágil.
O Arbitrator tentou se mover, e alertar os demais, mas percebeu que estava paralisado; nem seu corpo, nem sua boca eram capaz de agir.
Denlen gritou. Os olhos da jovem faiscaram, e tudo em volta foi engolido por chamas esverdeadas.
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Sirius foi despertado pela dor. Respirava com dificuldade, seus pulmões chiavam a cada inspiração, seu braço esquerdo não se movia. Ao abrir os olhos, teve grande dificuldade para dar-se conta do que via. Toda a parede posterior do edifício explodira, revelando a cidade e a selva que a envolvia. Chamas verdes tremulavam sobre os escombros da construção, e tudo que restara de seu esquadrão eram corpos carbonizados.
Ergueu-se com ajuda de seu braço ainda funcional, e cambaleou para a frente, nenhum sinal da feiticeira. Virou-se ao ouvir o som de tiros lá fora, mal conseguindo manter o equilíbrio. Foi quando pôde perceber o pandemônio que tomara conta da cidade lá embaixo.
De sua posição elevada, o Arbitrator notou mais naves de refugiados, cujo cascos envelhecidos e danificados se espalhavam por toda a cidade e suas cercanias. Observadas em sua totalidade, seu número era assustador, assim como o barulho de tiros e as explosões que vinham de todos os prédios em volta dos transportes. Sirius constatou que há muito que o controle da situação fora perdido.
Não havia como suas forças, ou mesmo as forças do incompetente governador controlarem tamanho flux de pessoas. Não havia o que fazer; Mesmoch estrava condenada a afundar sob o peso de todos eles.
Caiu de joelhos, buscando desesperado a única força capaz de ajudá-lo. “Deus-Imperador, eu Te imploro, ouça teu servo nesta hora de necessidade”. Sentiu o peso em seu peito aliviar. “Não sei o que causou este êxodo, não sei que força maligna agora assola tua divina criação, mas Te imploro, acalma estas águas, traz ordem a este caos e a paz a Tua congregação!”
Ao abrir os olhos e observar toda aquela destruição, algo lhe dizia que sua oração tinha sido em vão.